terça-feira, 15 de novembro de 2011

Bolsa de viagens curtas - Mario Benedetti


"Querida : quando parti, quando por fim resolvi partir, porque já não conseguia conviver com os antídotos do medo, e sentia que aos poucos começava a odiar minhas esquinas prediletas e as árvores  encurvadas , e já não tinha tempo nem vontade de me refugiar no caramanchão do bairro de Flores , e os amigos de sempre começaram a ser de nunca , e havia mais cadáveres nos lixões que nas funerárias , então abri a bolsa das viagens curtas ( embora soubesse que essa ia ser longa ) e comecei a enfiar nela lembranças ao acaso, objetos insignificantes , mas de valor afetivo, imagens sintéticas do feliz, letras que juntas narravam sofrimentos , últimos abraços na primeira fronteira , anoiteceres sem ângelus e com tamboriladas , sorrisos que tinham sido caretas e vice-versa, esmorecimentos e coragens, enfim , uma antologia da ninharia que o vento do hábito não tinha conseguido varrer da face da guerra.
Com essa bolsa das viagens curtas andei por lá e mais além, por aqui e mais aquém. Ás vezes trabalhava com as mãos ágeis e os olhos enxutos, para ganhar o pão, o vinho, o teto e o colchão. No entanto, com a bolsa de viagens curtas não tinha uma relação íntima. Eu sabia que ela dormia no fundo de um armário , desconjuntado pelo tempo e pelas traças. Mas para que me enfrentar a um passado em pílulas , umas nutrientes e outras envenenadas?
Contudo, aos domingos, quando a solidão virava silêncio insuportável, vez por outra eu tirava a bolsa do armário e puxava alguma lembrança de dentro dela; só uma por vez, para não me atordoar. Foi assim que me caiu  nas mãos um livro que foi de cabeceira e que eu devo ter lido umas vinte vezes , mas agora me meti em várias de suas páginas e ele não me disse nada , não me perguntou nem respondeu nada, como se não fosse meu. Portando, o joguei fora.
Outro domingo, resgatei uma foto agora feita sépia e lá estavam vários personagens que ocuparam um lugarzinho na minha vida. Dois deles nem imagino onde estarão; um se mantém fiel a si mesmo; três encontraram certa noite uma morte com dragonas ; outros dois se tornaram, com o tempo, finos, elegantes delatores , e hoje gozam do respeito da amnésia pública.O último sou eu , mas também sou outro, quase não me reconheço, talvez porque se me enfrento ao espelho não estou em sépia . Pensando bem, é uma foto acabada, vencida. Portanto, joguei fora.
Outro domingo, tirei da bolsa um relógio à prova d´água e de choque. É de uma boa marca suíça , mas estava parado num crono-símbolo, ou seja, a hora, o minuto e o segundo em que, em plena rua , abateram o Venâncio, você sabe quem é , nesse tempo foi meu Greenwich.
Para que vou querer um relógio que só cronometra e fixa a desgraça? Portanto, o joguei fora.
Domingo após domingo fui esvaziando a bolsa: canivetes, canetas, óculos escuros, recortes de jornais, calmantes , agendas, passaportes vencidos, mais fotos, cartas de amigos e inimigos. A verdade é que tudo foi me parecendo velho , inexpressivo, calado, desconexo, precário.
No entanto, ontem, domingo, meti outra vez minha mão naquele poço do passado, e ela saiu com uma coisa tua: teu lenço de seda azul, aquele em que em três das quatro estações rodeava teu pescoço bonito , jovem, que eu tanto amava. Eles acabaram com você, e eu estou insuportavelmente só. Te mataram no meu lugar. É duro admitir, caralho, que você é minha morte suplente.
Portanto, dessa vez vou jogar fora minha pobre bolsa para viagens curtas e ficar só com teu lenço azul.
Vou te guardar comigo para a viagem longa."

( a exceção de todos, esse é completo e todas as vezes que eu o leio, encontro uma beleza que vicia, uma tristeza tão bem desenhada...).

conto completo "Bolsa de viagens curtas" incluído no livro "Correio do tempo" - Mario Benedetti

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