quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Verão - J.M. Coetzee


" Se os africanos eram eles, quem era nós ? os africânderes ?

Não. Nós era principalmente a gente de cor. É um termo que eu só uso com relutância , para abreviar . Ele - Coetzee - evitava esse termo o quanto podia. Eu mencionei o utopismo dele. Evitar esse termo era outro aspecto desse utopismo. Ele ansiava por um dia em que todo mundo na África do Sul não se chamasse de nada , nem de africano, nem de europeu, nem de branco, nem de negro , nem de nada, em que as histórias familiares estivessem tão emaranhadas e misturadas que as pessoas fossem etnicamente indistinguíveis, ou seja - pronuncio de novo essa palavra maldita - de cor. Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil e os brasileiros. Claro que nunca tinha estado no Brasil."

( Sophie - professora em entrevista ao biógrafo inglês Vincente )

domingo, 20 de novembro de 2011

Pedro e Tina ( uma amizade muito especial ) - Stephen Michael King

 

"Cada vez que Pedro tentava escrever uma linha reta...
  Ela saia toda torta.
  Quando todos à sua volta olhavam para cima...
  Pedro olhava para baixo.
  Se ele achava que ia fazer um dia lindo e ensolarado...
  Chovia.
  Um dia, de manhã bem cedo, quando estava andando de costas contra o vento,
  Pedro deu um encontrão em Tina.
  Tina fazia tudo certinho.
  Ela nunca amarrava errado os cordões de seus sapatos
  nem virava o pão com a manteiga para baixo.
  Ela sempre se lembrava do guarda-chuva e sabia muito bem escrever seu nome.
  Pedro ficava encantado com tudo que Tina fazia.
  Então, Tina mostrou a ele a diferença entre direito e esquerdo,
  entre a frente e as costas,
  e que o céu era em cima e o chão era embaixo.
  Um dia, eles resolveram construir uma casa na árvore.
  Tina fez um desenho para que a casa ficasse bem firme em cima da árvore.
  Pedro juntou uma porção de coisas para enfeitar a casa.
  Eles acharam muito engraçado.
  Bem no fundo, Tina gostaria que tudo que ela fizesse não fosse tão perfeito.
  Então, Pedro lhe arranjou um casaco e um chapéu que não combinavam.
  Depois, ensinou Tina a andar de costas e a dar cambalhotas.
  Eles rolaram morro abaixo...
  E juntos aprenderam a voar.
  Pedro e Tina são amigos inseparáveis...
  até debaixo d´água,
  e para sempre."

( as palavras são belíssimas mas sem as imagens não dá para imaginar a beleza do livro, texto e ilustrações maravilhosas! recomendo...).

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Ausências - Mario Benedetti

" Justamente por causa do mau tempo, não puderam ficar no pátio. Carmela disse: "Vamos para a cozinha, que eu te faço um café." Então, ela vigiava a cafeteira , de costas para Fabián, ele a viu tão frágil, tão indefesa , tão tomada por um medo inútil, que também se sentiu frágil, mas principalmente comovido. Sem pensar duas vezes, aproximou-se da moça e a abraçou por trás. Mas o abraço não foi tão apertado, que a impedisse de virar e encará-lo.
Ele começou a beijar seus olhos , de novo em lágrimas, e quando chegou à boca, ainda de lábios cerrados, sentiu que alguma coisa estava acontecendo com ele. E com ela, que, pouco a pouco e como à própria revelia , foi entreabrindo os lábios até receber o beijo com ansiedade e tristeza. Ele teve suficiente presença para estender um braço e desligar a cafeteira , que começava a transbordar, mas com o outro começou a desabotoar aquela bata branca, sempre impecável, que era como o uniforme de Carmela. Entregou-se, meio resignada, mas quando Fabián acabou de tirar sua bata, ela cruzou os braços sobre o peito e repetiu várias vezes: "Não sei, não sei, não sei."
"Sabe sim", ele disse e acabou de despi-la. Então ela o abraçou, mas ainda não como uma resposta amorosa, e sim para ocultar sua nudez de Fabián e de si mesma. Ele a pegou no colo ( era tão leve ) e a levou para dentro da casa. Deduziu que em algum lugar devia haver uma cama, mas  teve de achá-la por conta própria. Ela estava ocupada demais com seus escrúpulos para servir de guia.
Quando ele, também sem roupa, enfim se deitou a seu lado, ela fez um alerta honesto, um necessário aviso aos navegantes: "Sou virgem". Fabián limitou-se a sussurrar ao seu ouvido: "A virgindade faz mal á saúde, sabia?" Ela achou graça naquela saída extemporânea , sorriu para si mesma e só então relaxou, desfrutando das carícias e acariciando."

( do maravilhoso conto Ausências do livro Correio do Tempo - Mario Benedetti ).

Bolsa de viagens curtas - Mario Benedetti


"Querida : quando parti, quando por fim resolvi partir, porque já não conseguia conviver com os antídotos do medo, e sentia que aos poucos começava a odiar minhas esquinas prediletas e as árvores  encurvadas , e já não tinha tempo nem vontade de me refugiar no caramanchão do bairro de Flores , e os amigos de sempre começaram a ser de nunca , e havia mais cadáveres nos lixões que nas funerárias , então abri a bolsa das viagens curtas ( embora soubesse que essa ia ser longa ) e comecei a enfiar nela lembranças ao acaso, objetos insignificantes , mas de valor afetivo, imagens sintéticas do feliz, letras que juntas narravam sofrimentos , últimos abraços na primeira fronteira , anoiteceres sem ângelus e com tamboriladas , sorrisos que tinham sido caretas e vice-versa, esmorecimentos e coragens, enfim , uma antologia da ninharia que o vento do hábito não tinha conseguido varrer da face da guerra.
Com essa bolsa das viagens curtas andei por lá e mais além, por aqui e mais aquém. Ás vezes trabalhava com as mãos ágeis e os olhos enxutos, para ganhar o pão, o vinho, o teto e o colchão. No entanto, com a bolsa de viagens curtas não tinha uma relação íntima. Eu sabia que ela dormia no fundo de um armário , desconjuntado pelo tempo e pelas traças. Mas para que me enfrentar a um passado em pílulas , umas nutrientes e outras envenenadas?
Contudo, aos domingos, quando a solidão virava silêncio insuportável, vez por outra eu tirava a bolsa do armário e puxava alguma lembrança de dentro dela; só uma por vez, para não me atordoar. Foi assim que me caiu  nas mãos um livro que foi de cabeceira e que eu devo ter lido umas vinte vezes , mas agora me meti em várias de suas páginas e ele não me disse nada , não me perguntou nem respondeu nada, como se não fosse meu. Portando, o joguei fora.
Outro domingo, resgatei uma foto agora feita sépia e lá estavam vários personagens que ocuparam um lugarzinho na minha vida. Dois deles nem imagino onde estarão; um se mantém fiel a si mesmo; três encontraram certa noite uma morte com dragonas ; outros dois se tornaram, com o tempo, finos, elegantes delatores , e hoje gozam do respeito da amnésia pública.O último sou eu , mas também sou outro, quase não me reconheço, talvez porque se me enfrento ao espelho não estou em sépia . Pensando bem, é uma foto acabada, vencida. Portanto, joguei fora.
Outro domingo, tirei da bolsa um relógio à prova d´água e de choque. É de uma boa marca suíça , mas estava parado num crono-símbolo, ou seja, a hora, o minuto e o segundo em que, em plena rua , abateram o Venâncio, você sabe quem é , nesse tempo foi meu Greenwich.
Para que vou querer um relógio que só cronometra e fixa a desgraça? Portanto, o joguei fora.
Domingo após domingo fui esvaziando a bolsa: canivetes, canetas, óculos escuros, recortes de jornais, calmantes , agendas, passaportes vencidos, mais fotos, cartas de amigos e inimigos. A verdade é que tudo foi me parecendo velho , inexpressivo, calado, desconexo, precário.
No entanto, ontem, domingo, meti outra vez minha mão naquele poço do passado, e ela saiu com uma coisa tua: teu lenço de seda azul, aquele em que em três das quatro estações rodeava teu pescoço bonito , jovem, que eu tanto amava. Eles acabaram com você, e eu estou insuportavelmente só. Te mataram no meu lugar. É duro admitir, caralho, que você é minha morte suplente.
Portanto, dessa vez vou jogar fora minha pobre bolsa para viagens curtas e ficar só com teu lenço azul.
Vou te guardar comigo para a viagem longa."

( a exceção de todos, esse é completo e todas as vezes que eu o leio, encontro uma beleza que vicia, uma tristeza tão bem desenhada...).

conto completo "Bolsa de viagens curtas" incluído no livro "Correio do tempo" - Mario Benedetti