sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto

"...Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas...E não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos , a matar, sempre a matar...Este seu irmão que estás vendo,também fez das suas, também foi descobrir dentro de si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade...Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava a meus pés...Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguém enfim....Não imaginas como que me doía não era a ferida, era a alma, era a consciência; e Ricardo, que foi ferido e caiu ao meu lado, a gemer e pedir -"capitão, meu gorro, meu gorro!"- parecia que era o meu próprio pensamento que ironizava o meu destino...
Esta vida é absurda e ilógica ; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...
O melhor é não agir, Adelaide; e desde que meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das coisas não provoque a minha ação o aparecimento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de viver...
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil . Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos,foram estragados,foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer...
Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir;  passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com sua brutalidade e fealdade."

( trecho de carta de Policarpo Quaresma á irmã Adelaide - Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto ).

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Memórias Inventadas - As Infâncias de Manoel de Barros


" De outra feita ,no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas naquele verbo novo trouxe um perfume de poesia á nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Pois depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve/ que eu não sei a ler". Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro."

( Memórias Inventadas - As Infâncias de Manoel de Barros - Editora Planeta )

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ah, Se A Gente Não Precisasse Dormir ! - Keith Haring


Diversão - Celebrar a Vida

"Um bando de macacos brinca na copa de uma árvore. Estão pulando e rindo porque a vida é muito divertida. É bom quando aprendemos a gostar de nós mesmos tal como somos e a gostar dos outros porque eles são diferentes e divertidos, cada um do seu jeito. Curtir a vida e os amigos é motivo suficiente pra festejar."

( Ah, Se a Gente Não Precisasse Dormir ! - Henry Haring - CosacNaify )

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Casamento - Adélia Prado

" Há mulheres que dizem:
  Meu marido, se quiser pescar, pesque,
  mas que limpe os peixes.
  Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
  ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
  É tão bom, a gente sozinhos na cozinha,
  de vez em quando os cotovelos se esbarram,
  ele fala coisas como "este foi difícil"
  "prateou no ar dando rabanadas"
  e faz o gesto com a mão.
  O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
  atravessa a cozinha como um rio profundo.
  Por fim, os peixes na travessa,
  vamos dormir.
  Coisas prateadas espocam:
  somos noivo e noiva."

( Casamento - Adélia Prado - Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século - Seleção de José Nêumanne Pinto )
 
 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Amores Difíceis - Ítalo Calvino

" Stefania compreendeu que acontecera algo e ela não podia mais voltar atrás. Este seu novo modo de ficar no meio dos homens, o notívago, o caçador, o operário, a tornara diferente. Tinha sido este o seu adultério, este ficar sozinha no meio deles, assim, em pé de igualdade. De Fornero já nem se lembrava mais.
O portão estava aberto. Stefania R. entrou em casa bem ligeirinho. A zeladora não a viu."

( A Aventura de uma esposa )

" Elide lavava os pratos, examinava a casa de cima a baixo, as coisas que o marido tinha feito, sacudindo a cabeça.Agora ele estava correndo pelas ruas escuras, entre os raros faróis, talvez já estivesse depois do gasômetro. Elide ia para a cama, apagava a luz. De seu próprio lado, deitava, espichava um pé em direção ao lugar do marido, para procurar o calor dele, mas toda vez reparava que onde ela dormia era mais quente, sinal de que Arturo também havia dormido ali e isso despertava nela uma grande ternura."

( A Aventura de um esposo e uma esposa )

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Um gato chamado Gatinho - Ferreira Gullar

" O gato é uma maquininha
  que a natureza inventou;
  têm pelo, bigode, unhas
  e dentro tem um motor.
  Mas um motor diferente
  desses que tem nos bonecos
  porque o motor do gato
  não é um motor elétrico.
  É um motor afetivo
  que bate em seu coração
  por isso faz ronron
  para mostrar gratidão.
  No passado se dizia
  que esse ronron tão doce
  era causa de alergia
  pra quem sofria de tosse.
  Tudo bobagem, despeito,
  calúnias contra o bichinho:
  esse ronron em seu peito
  não é doença - é carinho."

( Ronron do Gatinho , do livro Um gato chamado Gatinho de 2000 )
 

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Paris é uma festa - Ernest Hemingway

"...Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como uma moeda acabada de cunhar, se é que se pode cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal á face.
Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer,mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava á espera de alguém. Por isso continuei a escrever.
O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzí-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça todas as vezes que levantava os olhos ou quando fazia a ponta do lápis, com um apontador, deixando as raspas encaracoladas no pires que tinha sob o cálice.
"Eu a vi, oh, beleza, você me pertence agora, seja quem for que esteja esperando e mesmo que nunca a veja mais em toda minha vida", pensei. "Você me pertence, toda a Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis."
Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais por si próprio , de modo que não tornei a levantar a cabeça.
Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava, e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto,afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos á procura da moça, não a encontrei mais."Tomara que tenha ido com um homem decente", pensei. Mas sentia-me triste..."

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Marcelino Pedregulho - Sempé

"Se eu quisesse que todo mundo ficasse triste, contaria que os dois amigos, presos ás suas obrigações, não se reviram mais. De fato, é o que acontece na maioria das vezes. A gente reencontra um amigo, fica supercontente, faz planos.
E depois, a gente não se vê mais.Porque não temos tempo, porque moramos longe um do outro, porque temos um monte de trabalho. Por mil outros motivos.
Mas Marcelino e Renê se reviram."


( trecho de Marcelino Pedregulho - do ilustrador francês Jean -Jacques Sempé - editora - Cosac Naify )

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

D. Quixote da Mancha



" Em suma, ele engolfou-se tanto em sua leitura, que lendo passava as noites em claro, e os dias em turvo; e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro de maneira que veio a perder o juízo. Encheu-lhe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros,tanto de encantamentos como de pelejas, batalhas, duelos, ferimentos, galanteios, amores, desgraças e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação que era verdade toda aquela máquina daquelas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história mais certa no mundo."

" Limpas,pois, suas armas, tornado o morrião celada, dado nome a seu rocim e confirmando-se a si mesmo, convenceu-se de que não lhe faltava outra coisa senão procurar uma dama de quem enamorar-se,porque cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas nem fruto e corpo sem alma."

" Ah! Como folgou nosso bom cavaleiro quando fez este discurso, e mais ainda quando achou alguém a quem dar o nome de sua dama! É que calhou, pelo que se crê, haver num vilarejo próximo do seu uma moça lavradora de muito bom parecer, de quem ele um tempo andara enamorado, ainda que, pelo que se sabe,ela o jamais o tivesse sabido nem lho tivesse dado a olhar. Chamava-se Aldonza Lorenzo, e foi a ela que lhe pareceu bom dar o título de senhora de seus pensamentos ; e, buscando-lhe nome que não desdissesse muito do seu e que soasse e tendesse ao de princesa e grã senhora, veio a chamá-la " Dulcinéia de Tolboso" porque era natural do Toboso: nome, a seu ver, músico e original e significativo, como todos os demais que a ele e a suas coisas tinha dado."


( O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha - Miguel de Cervantes )

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Correspondências entre Anton P. Tchekhov e Máximo Górki

" Eu, em seu lugar, partiria para a Índia, para o diabo sabe aonde, cursaria mais duas faculdades, faria coisas e mais coisas. Você dá risada, mas eu tenho tanta mágoa de já estar com 40, ter dispnéia e outras amolações que me impedem de viver livremente. De qualquer modo, seja um homem bom e um bom companheiro, não se zangue por eu, nas minhas cartas, fazer sermões como um protopope.
 Escreva-me. Estou esperando Fomá Gordiéiev, que até agora não li devidamente.
 Nada de novo. Saúde. Um forte aperto de mão.

Seu A. Tchekhov"

" Sabe, é muito desagradável ler em suas cartas que você está sentindo tédio. Isto absolutamente não lhe convém e não deve acontecer, de modo algum. Você escreve que já está com quarenta anos. Você está apenas com quarenta anos ! E neste meio tempo, quanto você já escreveu, e como escreveu! Pois é isto ! É terrivelmente trágico que todos os russos se considerem abaixo do seu valor real.Parece que você também está concorrendo para isso."

Seu A. Piechkóv * "

* O nome de Máximo Górki ( isto é, o Amargo ) era Aleksiéi Maksímovitch Piechkóv.

( trechos das cartas trocadas entre Anton P. Tchekhov e Máximo Górki - Carta e  Literatura - Sophia Angelides - Edusp )

Sábado - Ian McEwan

" Sexo é um meio diferente , refrata o tempo e os sentidos , um hiperespaço biológico tão remoto da vida consciente quanto os sonhos , ou quando a água é do ar. Como sua mãe dizia, um outro elemento; o dia se modifica, Henry , quando a gente nada. E esse dia está destinado a se destacar dos demais."


( Sábado - Ian McEwan )

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

o Mapa de Sonhos - Uri Shulevitz


" No dia seguinte meu pai pendurou o mapa.
  Ele ocupou a parede inteira!
  Nosso quartinho sem graça inundou-se de cores.
  Fiquei fascinado pelo mapa
  e passei horas olhando para ele,
  examinando cada detalhe.
  E durante muitos dias eu o desenhei
  em cada pedacinho de papel que me aparecia pela frente.
  Eu encontrava nomes desconhecidos naquele mapa.
  Aterrisei em desertos abrasadores.
  Percorri praias,sentindo a areia entre os dedos dos pés.
  Escalei montanhas nevadas
  onde o vento gelado lambia meu rosto.
  Vi templos maravilhosos
  com esculturas de pedra  dançando nas paredes
  e pássaros de todas as cores
  cantando nos telhados.
  Atravessei pomares cheios de frutas,
  comi mamões e frutas até me fartar.
  Bebi água fresquinha
  e descansei á sombra de palmeiras.
  Cheguei a uma cidade cheia de arranha-céus
  e tentei contar suas janelas.
  Eram tantas que caí no sono antes de acabar.
  E assim passei horas de encantamento
  longe da fome e da miséria.
  E perdoei o meu pai,
  afinal ele fez a coisa certa."

( Mapa de Sonhos - Uri Shulevitz )

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Assassinato e outras histórias - Anton Tchekhov

" Antes de qualquer pessoa , interrogaram Iákov, e ele fez ver que Matviei, na segunda-feira à tarde, partira para Vedeniápino a fim de jejuar antes de fazer a confissão, e que talvez serradores, que então trabalhavam na ferrovia, o tivessem matado. Quando o juiz de intrução lhe perguntou como se podia explicar o fato de Matviei ter sido encontrado no meio da estrada, se o seu chapéu estava em casa - seria possível que ele tivesse partido para Vedeniápino sem chapéu? E também por que motivo perto de Matviei, na estrada , sobre a neve , não encontraram nem um pingo de sangue,se ele tinha o crânio fraturado, além de ter o rosto e o peito enegrecidos de sangue. Iákov perturbou-se , confundiu-se e respondeu:
_ Não posso saber.
E aconteceu exatamente aquilo que Iákov temia: chegou o guarda, o policial pôs-se a fumar no oratório e Aglaia disparou pragas contra ele, disse desaforos para o comissário de polícia rural , e depois, quando conduziram Iákov e Aglaia para fora do pátio, os mujiques aglomeraram-se no portão e disseram:
_ Estão levando os beatos !- e todos pareciam contentes."

( trecho do conto "O Assassinato" da coletânea de contos do livro " Assassinato e outras histórias "- Anton Tchekhov )

" Da noite para o dia, tudo se acalmou. Quando se levantaram e olharam pela janela, os salgueiros desfolhados, com os galhos ligeiramente curvados para baixo, mantinham-se absolutamente imóveis, o tempo estava nublado, sereno, como se a natureza agora estivesse envergonhada de sua orgia, das loucuras da noite e das liberdades que havia concedido às suas paixões."

( trecho do conto "Em serviço" da coletânea de contos do livro " Assassinato e outras histórias" - Anton Tchekhov ).

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Outra volta do parafuso - Henry James

   "Decorrido um segundo, em que moveu a cabeça como um cão que perdeu a pista, a que a lançou para trás, num gesto brusco, como em busca de ar e de luz, voltou-se para mim pálido de cólera, perplexo , olhando inutilmente para todos os lados e não encontrando nada, embora eu sentisse o aposento envenenado pela dominante e opressora presença.
- É ele ?
Eu estava tão decidida a obter todas as provas que, para desafiá-lo, simulei glacial tranquilidade:
_ A quem você se refere?
_ Peter Quint ! Ah, seu demônio !
Seu rosto dirigiu novamente, em torno do aposento, uma convulsa súplica:
_ Onde?
Tenho ainda em meus ouvidos o som daquele nome, proferido como uma rendição suprema, como um tributo à minha dedicação.
_Que importância tem ele agora, meu  querido? Que importância poderá ter doravante? Eu tenho você - exclamei, dirigindo-me à fera - e ele perdeu para sempre!
E ajuntei, para demonstrar que cumprira a minha obra:
_ Ali, ali ! - exclamei, apontando a janela.
Mas Miles já havia escapado de meus braços e, voltando-se para o outro lado, ficou a fitar, perscrutadoramente , a janela, não vendo senão o dia tranquilo. Ante o golpe dessa perda, de que eu tanto me orgulhava, lançou um grito de criatura lançada sobre o abismo, e o gesto com que o segurei bem poderá ter sido o de agarrá-lo em sua queda. Agarrei-o,sim, apertei-o de encontro ao peito...e bem pode imaginar-se com que paixão! Mas, ao cabo de um minuto, comecei a sentir o que realmente estreitava em meus braços. Estávamos a sós no dia tranquilo, e o seu pequeno coração, despossuído, deixara de pulsar."

( Outra Volta do Parafuso - Henry James )

terça-feira, 20 de julho de 2010

Canalha! - Fabrício Carpinejar



"Pelo fato dela estar com namorado ou casada, não suporta que alguém esteja solteira.Quer exterminar as solteiras da cidade, pois não é suficiente casar; o mundo tem de casar junto com ela para não se arrepender ou questionar sua rotina."

"Amor encomendado nunca funcionou . Como fazer render um encontro em que expectativa mínima é a de namoro e a máxima é de um casamento? Amor surge ao léu, de imprevisto, sem nenhuma preparação psicológica e pesquisas de opinião. Não se passa por teste vocacional, o amor pode contrariar a carreira."

"É um drama rever quem se gostava comprometida.Seria sorte se apenas os cotovelos doessem - é todo o corpo.Toda a ausência do corpo dela no seu."

" Nasci de uma saudade longa de você.Estar com você é só aumentá-la.E nem quero adoecer de outra maneira. Se estar com você é apressar o fim, nunca estive tão à vontade longe de meu nascimento."

"Eu não consegui inventá-la, você desobedeceu o autor e sumiu com o final do livro. Eu não consegui inventá-la,podia apenas descobri-la.
Será que depois de morto ainda enfrentarei pesadelos?
Até que a morte nos separe é muito pouco para mim. Preciso de você por mais de uma vida."

" Se já sofremos quando não declaramos o que nos incomoda,sofreremos o dobro se não declararmos o que nos alegra.
Merecemos aprender a contar os dias em que estamos livres, ao invés de enumerar com uma cruz em que estamos presos."

" Já ouvi muito que sexo não é seguir a cabeça e deixar as coisas acontecerem. Sexo seria não pensar.Não concordo, sexo não é inconsequência, é consequência da gentileza. Consequência de ouvir o sussurro, de ser educado com o sussurro e permanecer sussurrando. Perder o pudor, não perder o respeito. Perder a timidez, não perder o cuidado.
Sexo é pensar, como que não?
E fazer o corpo entender a pronúncia mais do que  compreender a palavra. Como se não houvesse outra chance de ser feliz.Não a derradeira chance, e sim a chance."

" Um amor atrasado não é amor. Um amor atrasado é amizade depois de um amor que não aconteceu."

( trechos do livro Canalha !  crônicas de Fabrício Carpinejar  )

terça-feira, 6 de julho de 2010

Lendo Lolita em Teerã - Azar Nafisi


" As ruas de Teerã e de outras cidades iranianas são patrulhadas pelas milícias que circulam em Toyotas brancos, quatro mulheres e homens armados, seguidos algumas vezes por um microônibus.Eles são chamados de Sangue de Deus.Eles patrulham as ruas para assegurar que as mulheres, como Sanaz, vistam seus véus adequadamente , não usem maquiagem , não caminhem em público com homens que não sejam seus pais, irmãos ou maridos. Ela passará por paredes pintadas com slogans, citações de Khomeini e de um grupo chamado o Partido de Deus: Homens que usam gravatas são lacaios dos Estados Unidos, o véu é a proteção da mulher. Ao lado do slogan existe o desenho de uma mulher a carvão : seu rosto não tem forma e é emoldurado por um chador escuro.Minha irmã, resguade o seu véu.Meu irmão, vigie os seus olhos.
Se  ela entrar num ônibus, o assento é segregado. Tem que subir pela porta de trás e procurar pelos bancos traseiros, alocados para as mulheres. Mas nos táxis, que aceitam até cinco passageiros, homens e mulheres podem viajar apertados como sardinhas, como diz o ditado, e o mesmo acontece nos microônibus, onde muitas das minhas alunas reclamam de ser importunadas por homens barbudos e tementes a Deus.
Fosse lá quem fôssemos -  e realmente não é importante a que religião pertencíamos, se queríamos usar o véu ou não, se observávamos certas normas religiosas ou não -, tornamo-nos a fantasia dos sonhos de outras pessoas.Um implacável aiatolá , um autoproclamado filósofo-rei, chegou para dominar nossa terra. Ele chegou em nome de um passado, passado que lhe havia sido roubado, afirmou. E agora ele queria nos recriar à imagem daquele passado ilusório. Serviria de consolo, ou gostaríamos de lembrar que o que ele nos fez foi o que permitimos que fizesse?"

( trecho de Lendo Lolita em Teerã - Azar Nafisi -  )

quarta-feira, 30 de junho de 2010

o diário de Anne Frank


Sábado, 20 de Junho de 1942

"Escrever um diário é uma experiência realmente estranha para alguém como eu. Não somente porque nunca escrevi antes, mas também porque acho que mais tarde ninguém se interessará,nem mesmo eu,pelos pensamentos de uma garota de treze anos.Bom,não importa.Tenho vontade de escrever,e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisas de dentro do meu peito."

Domingo, 5 de Julho de 1942

"Há alguns dias,enquanto dávamos um passeio pela praça perto de casa, papai começou a falar sobre se esconder.Falou que para nós seria difícil viver sem manter relações com o resto do mundo.Perguntei por que ele tinha puxado aquele assunto.
_Bom,Anne - respondeu ele.- Você sabe que há mais de um ano estamos levando roupas,comida e móveis para outras pessoas.Não queremos que nossos pertences sejam apanhados pelos alemães.E também não queremos cair nas garras deles.Por isso vamos embora por vontade própria,sem esperar que eles nos levem.
_Mas quando,papai?
Ele parecia tão sério que fiquei apavorada.
_Não se preocupe.Nós vamos cuidar de tudo.Simplesmente desfrute sua vida despreocupada enquanto é possível.
Era isso.Ah, que essas palavras sombrias não se tornem verdade pelo maior tempo possível!"

Quarta-feira , 8 de Julho de 1942

" Margot e eu começamos a colocar nossos pertences mais importantes numa pasta de escola. A primeira coisa que agarrei foi este diário , e depois rolinhos de cabelos, lenços, livros da escola, um pente e algumas cartas antigas.Preocupada com a ideia de ir para um esconderijo, juntei as coisas mais malucas na pasta,mas não me arrependo.Para mim as lembranças são mais importantes do que os vestidos.
Eu estava exausta,e mesmo sabendo que seria a última noite em minha cama,dormi imediatamente e só acordei quando mamãe me chamou ás cinco e meia da manhã seguinte.Felizmente não estava tão quente quanto  no domingo;uma chuva quente caiu durante o dia inteiro. Nós quatro vestimos tantas camadas de roupas a ponto de parecer que iríamos passar a noite numa geladeira, e isso para que pudéssemos levar mais roupas.Nenhum judeu em nossa situação ousaria sair de casa com uma mala cheia.Estava sufocando mesmo antes de sairmos de casa,mas ninguém se incomodou em perguntar como eu me sentia.
Margot encheu sua pasta da escola com livros,foi pegar sua bicicleta e, com Miep guiando o caminho , seguiu para o grande desconhecido .De qualquer modo,é assim que eu pensava,já que ainda não sabia onde era nosso esconderijo.
As camas desarrumadas,as coisas do café da manhã sobre a mesa,a carne para a gata na cozinha - todas essas coisas criavam a impressão de que havíamos saído apressadamente .Mas não estávamos interessados em impressões.Só queríamos sair de lá,sair e  chegar em segurança ao nosso destino.Nada mais importava.
Mais amanhã.

                                                                                                                                              Sua Anne."

( trechos de O Diário de Anne Frank - editado por Otto H. Frank e Mirjam Pressler - Editora Record )


terça-feira, 29 de junho de 2010

Ferreira Gullar


"Criação poética

O poema não tem plano.Escrevo  meio cego.É uma descoberta passo a passo,algo que vai sendo revelado a mim mesmo a cada momento.Eu nunca presto atenção no modo como construo um poema.O poema,para mim, é a grande aventura de como fazer. Costumo dizer em palestras para estudantes que,quando vou escrever um poema, a página está em branco,e isso significa que todas as possibilidades estão abertas,são infinitas.No momento em que sorteio uma palavra,reduzo as possibilidades,o acaso é menor.Mas não sei o que vai acontecer.

A alegria da escrita

O poema é cura,não doença.Escrevo para ser feliz,para me libertar do sofrimento,não para sofrer.É a alquimia da dor em alegria estética.Mesmo quando a coisa é doída,amarga,naquele momento a transformo no ouro que é o poema."

Ferreira Gullar

( trecho da entrevista concedida á revista cultural Dicta & Contradicta )

segunda-feira, 21 de junho de 2010

o vento e a canção - Mario Quintana

" Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:

- é que o voo do poema não pode parar."



( O vento e a canção - Mario Quintana - Anotações Poéticas )


sexta-feira, 18 de junho de 2010

Eu sou um gato - Natsume Soseki


"Rendo-me.Que aconteça o que tiver de acontecer.Não vou tentar mais me agarrar a nada.Decido não resistir e abandono nas mãos da natureza minhas patas dianteiras e traseiras,minha cabeça,meu rabo.
Aos poucos vou me sentindo tranquilo.Já não sei mais se é sufocante ou prazeroso.Não sei mais se estou dentro da água ou sobre almofadas.Não importa mais onde estou ou o que faço.Sinto-me bem.Ou melhor,não posso sequer distinguir mais se estou bem ou não.Quero destruir o sol e a lua,pulverizar céus e terras,adentrar em um estado de estranha paz.Estou morrendo.Morrendo.Morrendo obterei essa paz,só atingida por aqueles que passam para o outro mundo.Em nome de Buda,em nome de Buda.Rendo-lhe graças,rendo-lhe graças."

Eu sou um gato - Natsume Soseki

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A louca - Guy de Maupassant

" A velha governanta morrera durante o inverno.Ninguém se preocupava mais com o caso;somente eu pensava naquilo sem parar.
O que tinham feito da mulher? Ela havia escapado através dos bosques?! Haviam-na recolhido em algum lugar e posto num hospital sem que se pudesse lhe tirar nenhuma informação? Nada conseguia diminuir minhas dúvidas.Mas aos poucos o tempo apaziguou o tormento do meu coração.
Ora, no outono seguinte, as perdizes vieram em massa,e, como minha gota me dava uma folga,me arrastei até a floresta.Tinha matado já uns quatro ou cinco bichinhos, quando abati um que quase desapareceu numa vala cheia de galhos.Fui obrigado a descer lá para apanhar minha presa.Encontrei-a caída ao lado da cabeça de um morto.E bruscamente a lembrança da louca me veio ao peito como um soco. Muitos outros , talvez, tinham desaparecido naqueles bosques durante aquele ano sinistro;mas não sei por que eu tinha certeza,certeza absoluta - eu lhe garanto -, que encontrava a cabeça daquela miserável alienada.
E de súbito compreendi,adivinhei tudo.Eles a tinham abandonado sobre o colchão, na floresta gelada e deserta; e fiel à sua ideia fixa, ela se deixara morrer sob o espesso cobertor de neve, sem nem mesmo mover o braço ou a perna.
Depois os lobos a devoraram.
E os pássaros fizeram seus ninhos com a lã do colchão despedaçado.
Eu guardei aquela triste ossada.E faço votos de que nossos filhos não vejam jamais uma guerra."

( Trecho de "A Louca" - 125 contos de Guy de Maupassant )

quarta-feira, 12 de maio de 2010

do conto breve e seus arredores

"Há a massa que é o conto, há a angústia e a ansiedade e a maravilha,porque as sensações e os sentimentos também se contradizem nesses momentos ,escrever um conto assim é simultaneamente terrível e maravilhoso,há um desespero exaltante,uma exaltação desesperada; é agora ou nunca,e o temor de que pode ser nunca exarceba o agora , faz dele máquina de escrever correndo a todo teclado , esquecimento da circunstância , abolição do circundante .Então a massa negra vai clareando à medida que se avança ,incrivelmente as coisas são de uma extrema facilidade como se o conto já estivesse escrito com uma tinta invisível e a gente lhe passasse um pincelzinho em cima para despertá-lo . Escrever um conto assim não dá nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo aconteceu antes e esse antes que se deu num plano onde " a sinfonia se agita na profundeza", para dizer a Rimbaud, foi o que provocou a obsessão , o coágulo abominável a ser arrancado com safanões de palavras.E por isso, porque tudo está decidido numa região que diurnamente me é alheia ,nem sequer o arremate do conto apresenta problemas,sei que posso escrever sem interrupções ,vendo se apresentarem e se sucederem os episódios e que o desenlace está tão incluído no coágulo inicial quanto o ponto de partida."

( Do conto e seus arredores - Julio Cortazar - Último Round - Tomo I )

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Memórias do subsolo

"Deixai-nos sozinhos,sem um livro,e imediatamente ficaremos confusos,vamos perder-nos;não saberemos a quem aderir , a quem nos ater, o que amar e o que odiar,o que respeitar e o que desprezar.Para nós é pesado,até,ser gente com corpo e sangue autênticos,próprios;temos vergonha disso,consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram."

Memórias do subsolo - Fiódor Dostoiévski

quinta-feira, 11 de março de 2010

Crime e Castigo

" Ela não pôde ir além em sua leitura,fechou o livro e levantou-se rapidamente:
- Acabou a ressureição de Lázaro - murmurou gravemente.Ficou imóvel,sem ousar lançar um olhar a Raskólnikov . Seu tremor febril durava sempre. O coto da vela acabava de consumir-se no castiçal torcido e iluminava fracamente aquele cômodo miserável,onde um assassino e uma prostituta se haviam tão estranhamente unido para lerem o Livro Eterno."

Crime e Castigo - Fiódor Dostoiévski

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

copie você mesma

"Ouça: respeite a você mais do que aos outros,respeite suas exigências,respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina o que é ruim em você - pelo amor de Deus,não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal,copie você mesma - esse é o único meio de viver."


( trecho da biografia Clarice, Benjamin Moser ).

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

o livro dos abraços


"Nos antigamentes,dom Verídico semeou casas e gentes em volta do botequim El Resorte,para que o botequim não se sentisse sozinho.Este causo aconteceu,dizem por aí,no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro,escondido na casa de um velhinho todo mequetrefe.
Uma vez por mês,o velhinho,que estava nas últimas,se levantava da cama e ia receber a pensão.
Aproveitando a ausência,alguns ladrões,vindos de Montevidéu,invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira,caberto de trapos,num canto do porão.O tremendo cadeado que o defendia resistiu,invicto,ao ataque das gazuas.
E assim,levaram o baú.Quando finalmente conseguiram abri-lo,já longe dali,descobriram que o baú estava cheio de cartas.Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.
Os ladrões iam queimar as cartas.Discutiram.Finalmente,decidiram devolvê-las.Uma por uma.Uma por semana.
Desde então,ao meio-dia de cada segunda feira,o velhinho se sentava no alto da colina.E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho.Mal via o cavalo,gordo de alforjes,entre as árvores,o velhinho desandava a correr.O carteiro que já sabia,trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher."

( causos/2 - do livro "o livro dos abraços" de Eduardo Galeano )