sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Água Viva - Clarice Lispector - II

" Sinto agora mesmo o coração batendo desordenadamente dentro do peito. É a reivindicação porque nas últimas frases andei pensando somente á tona de mim. Então o fundo da existência se manifesta para banhar e apagar os traços do pensamento. O mar apaga os traços das ondas na areia. Oh Deus, como estou sendo feliz. O que estraga a felicidade é o medo. Fico com medo. Mas o coração bate. O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa. A garantia única é que eu nasci. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma fora de te ser: eis os limites de minha possibilidade.
Estou numa delícia de se morrer dela. Doce quebranto ao te falar . Mas há a espera. A espera é sentir-se voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem para hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo."

( Água Viva - Clarice Lispector ).

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Água Viva - Clarice Lispector

" ...... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero para mim o menino que vi com cabelos de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia quanto era belo e sei que sabia que eu não o queria para mim. Sorriu porque não sentiu ameaça alguma.É que os seres excepcionais em qualquer sentido estão sujeitos a mais perigos do que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um táxi. A brisa arrepiava-me os cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolhi no canto do táxi de medo porque a felicidade dói. E isto tudo causado pela visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim - gosto é das pessoas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certo modo dera-me muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia."

( Água Viva - Clarice Lispector )

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Hóspede Secreto - Miguel Sanches Neto

" Soltei o corpo e, esparramado no chão, comecei a chorar.
Chorei por vários minutos, como se fosse criança. Chorei tudo que eu não tinha chorado na vida. Chorei as lágrimas que engoli no enterro da mãe, chorei a saudade, sua falta.Chorei como órfão indefeso.
Não comi, não tomei banho, não assisti tevê. Embora o relógio já tenha há muito anunciado meia-noite,permaneço aqui na sala, as luzes apagadas, um sabor de sal nos lábios secos,sozinho, cansado, mas de um cansaço diferente daquele que sempre busquei.
De um cansaço para o resto da vida."

( do conto "O Bom Filho" do livro Hóspede Secreto - Miguel Sanches Neto ).