quinta-feira, 26 de março de 2020

DE AMOR E TREVAS - AMÓS OZ


"A única coisa que tínhamos em abundância eram livros. Incontáveis, de parede a parede, no corredor, na cozinha, na entrada e em todos os peitoris. Milhares de livros em todos os cantos da casa. Havia um sentimento de que as pessoas vão e vem, nascem e morrem, mas os livros são eternos. Quando eu era pequeno, queria ser livro quando crescesse. Não escritor de livros, livro mesmo. Gente se pode matar como formigas. Escritores também não são tão difíceis de matar. Mas livros, mesmo se os destruirmos metodicamente, "sempre há chance de sobrar algum, nem que seja apenas um exemplar, a continuar sua vida de prateleira, eterna, discreta e silenciosa em uma estante esquecida de alguma biblioteca remota em Reykjavik , em Valladolid ou em Vancouver.
Aconteceu por duas ou três vezes de não termos dinheiro para comprar os mantimentos para o shabat. Então minha mãe fitava meu pai bem nos olhos, e ele compreendia que era chegada a hora da escolha e se aproximava da estante de livros. Era um homem de sólidos princípios morais e sabia que o pão devia preceder os livros e que o mais importante de tudo devia ser o cuidado com o filho. Lembro-me bem de suas costas curvadas ao sair de casa, levando três ou quatro dos seus queridos livros. Com o coração apertado, ele ia á loja do sr Meyer vender alguns exemplares valiosos como se os cortasse de sua própria carne. Assim curvadas certamente estavam as costas de Abraão ao sair de sua tenda de madrugada, carregando Isaac no ombro a caminho do monte Moriá.
Eu podia adivinhar seu sofrimento:meu pai tinha uma relação sensual com os livros. Gostava de apalpar, sentir, folhear, acariciar, cheirar. Era um insaciável caçador de livros, ia logo pegando e folheando, mesmo na biblioteca de desconhecidos. E a verdade é que os livros daquele tempo eram muito mais sensuais que os de hoje. Havia o que cheirar, e havia o que apalpar e acariciar."