sábado, 30 de dezembro de 2017

A MORTE DO PAI - KARL OVE KNAUSGARD


"Quando sua perspectiva de mundo se amplia, não mitiga a dor que acarreta, mas também o sentido dessa dor. Compreender o mundo requer que se mantenha uma certa distância dele. Ampliamos aquilo que é pequeno demais para ser visto a olho nu, como moléculas e átomos, enquanto minimizamos grandezas como formações de nuvens , deltas de rios, constelações.Somente ao trazer as coisas para a dimensão dos nossos sentidos é que somos capazes de fixá-las . E a essa fixação chamamos conhecimento. Ao longo de toda a infância e juventude lutamos para manter a distância adequada das coisas e dos fenômenos . Lemos, aprendemos, experimentamos, corrigimos. E aí um dia chegamos ao ponto em que todas as distâncias de que necessitamos foram determinadas, todos os sistemas de que necessitamos foram estabelecidos. É quando o tempo começa a passar mais rápido. Ele não encontra mais obstáculos, tudo está determinado, o tempo se esvai pela nossa vida, a vida passa num piscar de olhos,e, antes que nos demos conta do que está acontecendo, completamos quarenta, cinquenta,sessenta anos...Sentido requer conteúdo, conteúdo requer tempo, tempo requer resistência. Conhecimento é distância, conhecimento é deixar-se estar e é inimigo do sentido. A imagem que tenho do meu pai naquele entardecer de 1976 é, em outras palavras, dupla: por um lado, vejo-o como o vi daquela vez, com os olhos de um menino de oito anos: imprevisível e assustador, por outro lado o vejo como a um igual, cujo tempo de vida está sendo arrancado em grandes nacos, que carregam com eles o sentido da existência."



segunda-feira, 16 de outubro de 2017

1Q84 LIVRO 3 - HARUKI MURAKAMI


"Ao desligar o telefone, Ushikawa debruçou-se sobre a mesa e parou para refletir. Ele desconhecia os métodos que Morcego utilizava para obter informações . Ele sabia que essa era uma pergunta que não teria resposta. Em todo caso, era de supor que lançasse mão de métodos ilegais. Possivelmente subornava funcionários ou, em último caso, apelava para a invasão. Se a investigação envolver a necessidade de acessar computadores, a situação se torna ainda mais complexa.
Ainda são poucas as repartições públicas e empresas privadas que utilizam o computador para armazenar dados. É caro e trabalhoso. Mas as organizações religiosas que atuam em nível nacional certamente possuem recursos para implantá-los. Ushikawa não sabe quase nada de computadores, mas está ciente de que estão se tornando ferramentas imprescindíveis para armazenar informações. Frequentar a Biblioteca Nacional da Dieta e ficar o dia inteiro procurando informações em microfilmes de jornais e anuários será coisa do passado. O mundo se tornará um sangrento campo de batalha entre o gerente de computação e o hacker. Não. O termo correto não é exatamente sangrento . Apesar de, no campo de batalha, sempre se derramar um pouco de sangue. Mas, nesse caso, o sangue não tem cheiro. Um mundo estranho. Ushikawa preferia um mundo em que a existência de cheiros e da dor fossem perceptíveis. Ainda que, em determinadas situações , elas se tornem insuportáveis. Mas um tipo como Ushikawa , sem dúvida, muito em breve se tornaria obsoleto."




1984 e a previsão do futuro. :)

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

1Q84 - HARUKI MURAKAMI

"1Q84 - É assim que vou chamar esse mundo novo", decidiu Aomame. "Com a letra Q", de Question mark ; um "quê" de dúvida, de interrogação".

Enquanto caminhava, balançava a cabeça como se reafirmasse a sua decisão.
Querendo ou não, ela agora se encontrava nesse "1Q84". O ano e 1984 que ela conhecia deixara de existir . Agora estava em 1Q84. Houve uma mudança no ar, uma mudança no cenário. Precisava se adaptar o mais rápido possível às regras desse mundo novo com esse quê de interrogação . Precisava agir como um animal solto numa floresta desconhecida: para se proteger e conseguir sobreviver, tinha de conhecer o quanto antes o local, e se adaptar rapidamente às novas regras."


domingo, 20 de agosto de 2017

ROMANCISTA COMO VOCAÇÃO - HARUKI MURAKAMI


"Para manter essa determinação por muito tempo, torna-se essencial pensar na qualidade de vida. Primeiro, é importante viver de forma completa. E viver de forma completa é fortalecer o corpo, que é a armação que contém a alma, e fazê-lo avançar de forma contínua,  passo a passo. Viver é 
(muitas vezes) uma guerra cansativa e sem fim.
A meu ver , é praticamente impossível , na prática , manter-se somente com determinação ou uma alma firme e positiva, deixando de lado o avanço do corpo carnal. A vida não é tão fácil assim. Se as coisas penderem para um dos lados , cedo ou tarde haverá uma reação contrária, e as pessoas sofrerão as consequências. A balança que pende para um dos lados sempre tende a voltar ao equilíbrio. As forças física e espiritual são como os pneus de um carro. Suas forças trabalham de forma equilibrada quando a direção e a pressão certa são aplicadas."



quarta-feira, 19 de julho de 2017

O DEUS DAS PEQUENAS COISAS - ARUNDHATI ROY


"Não importava que a história já tivesse começado , porque o kathakali descobriu há muito que o segredo das Grandes Histórias é que elas não tem segredos. As Grandes Histórias são aquelas que você ouviu e quer ouvir de novo.Aquelas em que você pode entrar por qualquer parte e habitar confortavelmente . Elas não enganam você com truques e finais emocionantes. Elas não surpreendem você com o imprevisível . Elas são tão familiares como a casa em que se vive. Ou como o cheiro da pele do amante. Você sabe como elas terminam,mas,mesmo assim, você escuta como se não soubesse.Da mesma forma que apesar de saber que um dia vai morrer, você vive como se não fosse.
Nas Grandes Histórias você sabe quem vive,quem morre,quem encontra o amor, quem não encontra. E, mesmo assim, você quer ouvir de novo."



sábado, 15 de abril de 2017

Anatomia de um instante - Javier Cercas


"Nenhum personagem real se torna fictício por aparecer na televisão nem por ser um personagem eminentemente televiso, mas é muito provável que a televisão polua de irrealidade tudo o que toca, e que a retransmissão de um acontecimento histórico pela televisão altere de alguma forma a natureza deste, pois a tevê distorce o modo como o percebemos ( se é que não banaliza ou degrada)."


quarta-feira, 8 de março de 2017

Penumbras - Uwe Timm











"Também a sepultura de Marga havia sido revolvida por granadas nas batalhas de 1945, a lápide fora estilhaçada. Mas eu sabia onde podia encontrá-la, disse o cinzento. Aqui. E assim pude investigar sua história.

No dia 30 de maio, quatro horas da tarde, o médico das forças francesas encaminhou a autópsia oficial em minha presença. O cadáver estava bem conservado, a entrada e a saída dos tiros podiam ser claramente reconhecidas. A entrada de ambos era envolvida por uma borda de pólvora enegrecida e mostrava diâmetro de 9mm.
Com a inserção de sondas, os canais abertos pelos tiros foram claramente demonstrados. O indicador direito mostrava uma região de sangue coagulado. De resto, o corpo não tinha nenhum tipo de ferimento. O rosto mostrava uma expressão calma e tranquila. O cadáver ainda estava vestido nas roupas de piloto, com as quais a Srta. von Etzdorf havia entrado em seu quarto. Uma vez que as circunstâncias eram claras, eu dispensei a abertura do crânio.

(...)

Ela queria ser a primeira. Ela queria ir para lugares onde nenhum homem havia estado antes. Onde havia algo a descobrir, algo que ainda não havia sido investigado centenas de vezes. O novo, em que a gente se descobre de novo.Onde ela mesma se descobriria, correndo riscos e passando por necessidades, para assim mergulhar em seu interior como jamais fizera antes, penetrar no estranho, no estranho total, justamente através do susto e do espanto. Isso, diz o cinzento, é o que eu admiro nessa mulher."

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

UM OUTRO AMOR - KARL OVE KNASGARD


"Na manhã seguinte voltei ao Lasse i Parken. Coloquei um bloco de anotações em cima da mesa e comecei a escrever uma carta para Linda. Escrevi a respeito de quem ela era para mim. Escrevi a respeito de quem ela tinha sido para mim quando a vi pela primeira vez, e a respeito de quem era agora. Escrevi a respeito dos lábios dela, que deslizavam para cima dos dentes quando ela se empolgava, escrevi a respeito dos olhos dela, que cintilavam e revelavam uma escuridão e por assim dizer tragavam a luz para dentro de si. Escrevi a respeito da maneira como ela andava, a respeito dos movimentos discretos e dignos de uma modelo que ela fazia com o traseiro. Escrevi a respeito das feições discretas e japonesas. Escrevi a respeito da risada que às vezes tomava conta dela  e a respeito do quanto eu a amava nesses instantes. Escrevi a respeito das palavras que ela usava com frequência , a respeito de como eu amava o jeito que ela tinha de dizer estrelas e de espalhar a palavra "incrível" ao redor. Escrevi que todas essas coisas eram apenas o que eu tinha visto, e que eu mal conhecia, não tinha a menor ideia a respeito do que ela pensava e sabia pouco sobre a maneira como via o mundo e as outras pessoas, mas que o que tinha visto era suficiente, eu sabia que a amava e que sempre haveria de amá-la".

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Expurgo - SOFI OKSANEN


"Mais tarde Aliide ouviu histórias de campos cobertos de dolomita e trens cheios de crianças chorosas sendo evacuadas, soldados tirando as famílias de suas casas e estranhos flocos que caíam , estranhamente brilhantes , cobrindo os jardins. As crianças tentavam tocá-los ainda no ar, as menininhas queriam usá-los de enfeite nos cabelos, mas os flocos logo desapareciam, assim como os cabelos delas. Um dia a senhora Prik agarrou Aliide pelo braço no mercado e sussurrou-lhe ao ouvido: ainda bem que o meu filho quebrou a perna. Ainda bem que ele soube fazer isso. Disse que os amigos do filho, os que haviam sido convocados, tinham contado o que acontecera lá, e não estavam nem um pouco contentes com o alto pagamento que receberam em Chernobyl, temendo sofrer os efeitos da radiação. Tinham visto pessoas inchadas a ponto de ficarem irreconhecíveis. Pessoas lamentando a perda de seu lar, fazendeiros voltando secretamente para trabalhar nos campos na zona proibida. Casas esvaziadas e saqueadas, os bens vendidos no mercado da praça , motocicletas e casacos de lã da Crimeia. Haviam matado cães e gatos, e enchido intermináveis valas com seus corpos. O fedor de carne apodrecida, de casas, árvores e terra queimada, as camadas de terra varridas, cebolas, repolhos e arbustos transformados em caroços. As pessoas se perguntavam se era o fim do mundo, uma guerra, ou ambos? Contra quem estavam lutando, e quem venceria? Velhas senhoras se persignavam sem parar, tomando incontáveis litros de vodca ou aguardente caseira.
E, acima de tudo, a senhora Prik ressaltou que um rapaz dizia a quem estava partindo: nunca contem a ninguém sobre Chernobyl, porque qualquer mulher ou homem vai lhes dar um pé na bunda depois disso. Nunca contem a ninguém, porque ninguém vai querer filhos com vocês. A senhora Prik disse que o filho dela tinha um amigo cuja esposa terminara o casamento e fora embora com as crianças porque não queria que ele as tocasse e as contaminasse. Outro dos homens de Chernobyl foi deixado pela mulher depois que ela começou a ter pesadelos, sonhando com bezerros de três cabeças nascendo um após o outro, gatos com escamas em vez de pelos, porcos sem pernas. Não conseguia mais suportar aqueles pesadelos e não suportava ficar perto do marido, por isso partiu em busca de um homem mais saudável.
Ouvindo sobre aquelas mulheres que tinham se livrado dos maridos como se fossem lixo, Aliide ficou assustada, o susto se transformou em tremor, e ela começou a olhar com novos olhos os jovens que encontrava pelas ruas, procurando os que tinham retornado e reconhecendo neles algo familiar. Dava para ver neles um olhar sobre o qual pairava uma sombra, e ela tinha vontade de colocar as mãos na bochechas deles, de tocá-los.


Martin Truu acabou desfalecendo no jardim enquanto examinava com uma lupa uma folha de bétula. Quando Aliide encontrou o marido e virou seu corpo para o céu, viu a última expressão que ele tinha no rosto. Era a primeira vez que ela o via surpreso.