terça-feira, 21 de outubro de 2014

Aquela Água Toda - João Anzanello Carrascoza

"Quando percebeu, o sol era suave, a praia se despovoava, as ondas se encolhiam. Hora de ir,disse o pai e começou a apanhar as coisas. A família seguiu para a avenida, o menino lá atrás , a pele salgada e quente , os olhos resistiam em ir embora. No ônibus , sentou-se à janela, ainda queria ver a praia, atento à sua paixão. Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas, prédios novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do ônibus, tão macio...Começou a sentir um torpor agradável , os braços doíam , as pernas pesavam, ele foi se aquietando, a cabeça encostada no vidro...
Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou assustado, o cobrador o sacudia abruptamente , Ei, garoto,acorda! Acorda, garoto!, um zunzunzum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus , entre os caiçaras, procurando num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão - e nada. Eram só faces estranhas.
Levantou-se , rápido no seu desespero, Seus pais já desceram, o cobrador disse e tentou acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade às pressas e, afobado, se meteu nela de qualquer jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo instante, intuindo seu desdobramento : se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só precisava voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...
Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-os com a prancha. O ônibus parou, aos trancos. O cobrador gritou, Desce, desce aí! O menino nem desceu os degraus, pulou lá de cima, caiu sobre um canteiro na beira da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu correndo pelo calçadão, os cabelos de sal ao vento, o coração no escuro. Notou com alívio, lá adiante, o pai que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua direção. Depois...depois não viu mais nada: aquela água toda em seus olhos."


lindo, todo o livro em todas as linhas, escrita com as palavras perfeitas em seus lugares certos...


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Histórias de Paris - Mario Benedetti


"E de repente se faz um silêncio. Um silêncio espesso depois de tanta conversa transparente. Estou sentado na beira do catre, e ela está perto, na minha única cadeira , com os cotovelos apoiados na minha mesa cambaia  e roída pelos cupins. Então a puxo. Suavemente, como quem recupera um projeto inconcluso, mas agora com mais tino, mais experiência, mais profundidade, mais vontade de torná-lo real. Ela se deixa abraçar e até diria que me abraça, entretanto,graças ao espelho onde faço a barba todos os dias, posso ver que está olhando de novo para o infinito. Então a afasto com todo o carinho de que disponho, que é bastante, e pego seu rosto entre as mãos. Estou abalado, mas mesmo assim encontro forças para lhe perguntar o que está acontecendo, o que há com ela. Murmura alguma coisa num tom  tão baixo que não consigo captar uma palavra. Pega a minha mão e a guia lentamente até seu suéter marrom, na realidade até um dos seus peitos sob a lã penteada.
Não sei por quê, mas entendo que aquele gesto não tem o significado mais óbvio. Os olhos que me olham estão secos. Não pode ser, não vai ser, não tem volta, entende?
Isso é o que diz. Não pode ser, por mim e por você. Isso é o que diz. Todas as paisagens mudaram, em toda parte há andaimes, toda parte há escombros. Isso é o que diz. Minha geografia, Roberto. Minha geografia também mudou. Isso é o que diz."

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Dentro do Segredo - José Luís Peixoto


" O meu coração existia dentro de mim. Todas as luzes estavam apagadas. Corri sozinho na direção do rio Taedong. Havia milhares e milhares de pessoas nas suas margens. Através do negro opaco, passava entre elas. A única claridade que vinha do céu, da enorme quantidade de foguetes que rebentavam havia quase uma hora ao longo de quilómetros de rio. Mas ali, ao meu lado,na escuridão total, ninguém baixava a voz ou o olhar quando me via, a minha presença não era sentida. Durante aqueles minutos, fui norte-coreano. Houve mesmo pessoas a dirigirem-se a mim , a dizerem-me qualquer coisa , sem esperarem resposta. Isto, que parece pouco, foi tudo para mim, encheu-me. Esse foi o momento mais intenso que vivi na Coréia do Norte."