segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Ninguém tem culpa - Julio Cortázar


"Não quer abrir os olhos absurdamente , mas sabe que pulou para fora,essa matéria fria,essa delícia é o ar livre,e não quer abrir os olhos e espera um segundo,dois segundos,deixa-se viver em um tempo frio e diferente ,o tempo do lado de fora do pulôver,está de joelhos e é belo estar assim,até que,pouco apouco,reconhecidamente entreabre os olhos livres da baba azul da lã do lado de dentro,entreabre os olhos e vê as cinco unhas negras suspensas apontando para seus olhos,vibrando no ar antes de saltar contra seus olhos, e tem tempo de baixar as pálpebras e jogar-se para trás , cobrindo-se com a mão esquerda que é sua mão,que é tudo o que lhe resta para se defender de dentro da manga,para que puxe para cima a gola do pulôver e a baba azul envolva outra vez seu rosto,enquanto se levanta para fugir a outra parte,para chegar afinal a alguma parte sem mão e sem pulôver,onde somente haja um ar ruidoso que o envolva e o acompanhe e o acaricie e doze andares."

( do conto Ninguém tem culpa - Julio Cortázar - Final do Jogo )

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A Estepe - Anton Tcheckov


" Todos se puseram a olhar o horizonte e a procurar a raposa com os olhos,mas não viram.Apenas os olhinhos de Vássia podiam ver essas coisas e extasiava-se.Iegóruchka convenceu-se,depois,que a vista de Vássia era extraordinariamente aguda.Via tão bem que a estepe castanha,para ele, estava sempre cheia de vida e de conteúdo.Bastava-lhe fixar os olhos na distância para ver uma raposa,uma lebre ou uma abetarda ou outro qualquer animal desses que se escondem dos homens.É fácil ver uma lebre que foge,ou uma abetarda que voa,essas coisas que qualquer um que viaje pela estepe pode ver,mas não é qualquer um que consegue observar os animais selvagens na intimidade,quando não fogem,não se escondem e não olham inquietos para os lados.Vássia já tinha visto raposas brincando,lebres lavando-se com as patinhas,abetardas estendendo as suas asas preguiçosamente,aves das estepe que acertavam seus "pontos".Graças a essa capacidade visual,além do mundo que todos viam,para Vássia era possível ver um outro mundo seu,inacessecível aos demais e, provavelmente, muito bom, porque quando se punha a observá-lo,extasiado,era difícil não o invejar.
Quando a caravana retomou sua marcha os sinos da igreja chamavam para a missa."

( A Estepe - Anton Tcheckov )