quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O Livro Negro - Orhan Pamuk


" A vida é uma sucessão interminável de infortúnios; assim que um acaba, sempre há outro á espera, e assim que nos acostumamos a suportá-los, somos atingidos por sofrimentos ainda mais ferozes, que escavam em nossos rostos a mesma expressão abatida que nos deixa a todos tão parecidos. Mesmo quando esses infortúnios  desabam todos ao mesmo tempo sobre nós, já sabíamos havia muito que estavam de tocaia à beira do nosso caminho: já os esperávamos, já estávamos prontos para eles; ainda assim, no momento em que a nova nuvem de problemas nos avassala, como um pesadelo, sentimo-nos estranhamente sós, desesperadamente sós; e, incrivelmente, continuamos a sonhar com a felicidade que ela nos poderia nos trazer , se pelo menos conseguíssemos compartilhar a nossa dor com outras pessoas".


"Segundo Fazlallah, a linha de demarcação entre os ser e o não-ser era o som, a voz. Pois, quando passamos do mundo espiritual para o mundo material, a única coisa material é o som que cada coisa produz. Mesmo os objetos mais "silenciosos" produzem um som distinto quando batemos neles. a forma mais avançada do som é naturalmente a fala, e o fenômeno mais elevado é aquilo que chamamos de "verbo", o mistério que chamamos de "palavra", composto pelos tijolos mágicos que são as letras. E é possível ler claramente nos rostos dos homens as letras que revelam o sentido e a essência da santidade da vida, a manifestação de Deus sobre a terra."

"Mais adiante, F.M. Üçüncü tratava do elemento mais importante da doutrina hurufista: a relação entre os rostos e as letras. Seguindo a mesma linha de raciocínio desenvolvida por Fazlallah em seu Livro da vida eterna, explicava que Deus, embora invisível, manifestava-se no rosto dos homens; estudava detalhadamente os traços presentes nesse rosto e a relação entre esses traços e as letras do alfabeto árabe. Depois de uma longuíssima digressão um tanto pueril a partir de alguns versos dos maiores poetas do hurufismo - Nesimi, Rafi, Misali, Ruhi, - o autor acabava chegando a uma fórmula: em tempos de felicidade e vitória, o rosto de cada um de nós fica pleno de sentido, assim como o mundo em que vivemos. E esse significado nos foi revelado pelos hurufis, que foram os primeiros a decifrar os mistérios do universo e a discernir as letras em nossos rostos. Com o desaparecimento da doutrina hurufista, porém, as letras tinham se apagado dos nossos rostos, da mesma forma como se perdera o segredo do universo."