quinta-feira, 27 de maio de 2010

A louca - Guy de Maupassant

" A velha governanta morrera durante o inverno.Ninguém se preocupava mais com o caso;somente eu pensava naquilo sem parar.
O que tinham feito da mulher? Ela havia escapado através dos bosques?! Haviam-na recolhido em algum lugar e posto num hospital sem que se pudesse lhe tirar nenhuma informação? Nada conseguia diminuir minhas dúvidas.Mas aos poucos o tempo apaziguou o tormento do meu coração.
Ora, no outono seguinte, as perdizes vieram em massa,e, como minha gota me dava uma folga,me arrastei até a floresta.Tinha matado já uns quatro ou cinco bichinhos, quando abati um que quase desapareceu numa vala cheia de galhos.Fui obrigado a descer lá para apanhar minha presa.Encontrei-a caída ao lado da cabeça de um morto.E bruscamente a lembrança da louca me veio ao peito como um soco. Muitos outros , talvez, tinham desaparecido naqueles bosques durante aquele ano sinistro;mas não sei por que eu tinha certeza,certeza absoluta - eu lhe garanto -, que encontrava a cabeça daquela miserável alienada.
E de súbito compreendi,adivinhei tudo.Eles a tinham abandonado sobre o colchão, na floresta gelada e deserta; e fiel à sua ideia fixa, ela se deixara morrer sob o espesso cobertor de neve, sem nem mesmo mover o braço ou a perna.
Depois os lobos a devoraram.
E os pássaros fizeram seus ninhos com a lã do colchão despedaçado.
Eu guardei aquela triste ossada.E faço votos de que nossos filhos não vejam jamais uma guerra."

( Trecho de "A Louca" - 125 contos de Guy de Maupassant )

quarta-feira, 12 de maio de 2010

do conto breve e seus arredores

"Há a massa que é o conto, há a angústia e a ansiedade e a maravilha,porque as sensações e os sentimentos também se contradizem nesses momentos ,escrever um conto assim é simultaneamente terrível e maravilhoso,há um desespero exaltante,uma exaltação desesperada; é agora ou nunca,e o temor de que pode ser nunca exarceba o agora , faz dele máquina de escrever correndo a todo teclado , esquecimento da circunstância , abolição do circundante .Então a massa negra vai clareando à medida que se avança ,incrivelmente as coisas são de uma extrema facilidade como se o conto já estivesse escrito com uma tinta invisível e a gente lhe passasse um pincelzinho em cima para despertá-lo . Escrever um conto assim não dá nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo aconteceu antes e esse antes que se deu num plano onde " a sinfonia se agita na profundeza", para dizer a Rimbaud, foi o que provocou a obsessão , o coágulo abominável a ser arrancado com safanões de palavras.E por isso, porque tudo está decidido numa região que diurnamente me é alheia ,nem sequer o arremate do conto apresenta problemas,sei que posso escrever sem interrupções ,vendo se apresentarem e se sucederem os episódios e que o desenlace está tão incluído no coágulo inicial quanto o ponto de partida."

( Do conto e seus arredores - Julio Cortazar - Último Round - Tomo I )