quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ERa Uma Vez uma Capa - História Ilustrada da Literatura Infantil - Alan Powers


"Quem viveu durante a Segunda Guerra Mundial confirma o grande crescimento da leitura nesse período. Quer as pessoas estivessem em quartéis, abrigos ou simplesmente confinadas em casa devido ao perigo, aos blecautes e às limitações do transporte , havia pouco a fazer além de ler. Apesar da escassez de papel , novos livros eram produzidos e vendidos rapidamente . Para as crianças, a produção foi reduzida, e os editores se apoiaram fortemente nas reimpressões de textos antigos. Embora a série de HQ Rupert no Daily Express evitasse inteiramente o tema da guerra , autores renomados , como Richmal Crompton  e Angela Brazil, descobriram que era um tópico bem-vindo , apresentando contos relativamente inofensivos de espiões ou exilados.
  No entanto, nem toda atividade editorial era de alto padrão. Em um texto de 1952, o crítico Frank Eyre  lembrou : "Durante os anos da guerra , era impossível ter acesso a várias obras que figurariam em qualquer lista da literatura infantil moderna , e uma quantidade muito maior de livros  de qualidade inferior era produzida". Essa situação ficou ainda mais evidente porque a década de 1930 fora um período prolífico. Por outro lado, como observou o autor Geoffrey Trease, as restrições de papel significaram o fim do processo de "avolumar" artificialmente as edições, comum nos anos  anteriores ao conflito, e "os livros para criança sofreram um saudável processo de emagrecimento".
  Nos Estados Unidos a guerra não envolveu a população até 1941 e o país vivenciou um efeito menos devastador que na Inglaterra, portanto esse contratempo foi menos evidente."

O Velho que acordou menino - Rubem Alves


"Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar.  Bachelard observou que "a infância conhece a infelicidade através dos homens" ( A poética do devaneio, p.9 ). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação. Esperança é coisa de gente grande ,que vive no tempo, o passado, o presente, o futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente. Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente. Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança vive o momento. Eu só vivia o presente . Não tinha ansiedades. Meu irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: "O que nos resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai vendeu...". Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro. Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para nossas doideiras é ficar criança de novo."




quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

História do Pé e Outras Fantasias - J.M.G. Le Clézio



" O mar está bravo como há um ano, em fevereiro, no dia do naufrágio. As ondas verdes, com suas cristas eriçadas, rolam para a beira e vem rebentar na praia com um possante e grave bramido que toma a terra e o céu. Watson está deitado na areia, tem as pernas dobradas nos joelhos e a cabeça apoiada na barriga de Fatou. Estará dormindo? Bem, tem os olhos abertos, fita o céu azul-escuro por onde há nuvens passando. Dormir de verdade ele há muito tempo não dorme. Está tão magro e frágil, Fatou acha que até parece um menino. Na enfermaria de Tahiche , o interno disse que já havia algum tempo que ele se negava a comer. Sem razão, sem pedir nada a ninguém , a partir de certo dia não tocou mais na porção de arroz com peixe, nem nas frutas ou no pão. Suas rações eram comidas pelos outros presos, para os quais ele nem mesmo olhava. Bebia um pouco de água, e só. Quando Fatou chegou à prisão, Watson estava no soro. Ela falou com uns e outros, assediou funcionários, assistentes sociais , conselheiros. Graças à permissão de residência  em nome de Zambo, eles a ouviram. Inventou que estava chegando do Brasil, uma procura feita na polícia, jornais. Falou de Mahama, a vida dele em Gorée, deu os nomes dos coiotes , dos seus itinerários , denunciou Omar , o Filósofo, o pretenso Simon Frantz Fanon Taylor. O dinheiro que ele recebe dos jovens,a mentira que ele conta sobre Barsa ou barsaq , Barcelona ou a Morte.
    Como eles não sabiam o que fazer de Mahama - Watson , entregaram-no a ela. Tinham medo de que acabasse morrendo , já havia oito mortos na nova penitenciária de Tahiche , organizações não governamentais se punham à espreita do escândalo , como Jail Watchers , Norborder.org., Earth Times, Gabriel del Grande, do mesmo modo que os jornais , La Opinión , El Día, Tenerife News, todos prontos a falar disso na rede, e cabeças poderiam rolar.
    Fatou conseguiu trabalho em Los Cedros, uma pousada para ingleses ociosos em Los Cocoteros, e um quartinho nas dependências de empregados. Como a cama era muito estreita , pôs dois colchões no chão. Foi ali que Watson passou seus primeiros dias de liberdade , sem sair, quase sem se mexer, a não ser para ir ao banheiro comum do outro lado do bloco. De noite, quando o vento do mar bate nas palmeiras , como antes em Gorée, no quarto rosa. Sem pensar em nada, sobretudo não no futuro , Fatou ouve a respiração de Watson. Só uma coisa lhe interessa , o instante no qual ele despertará. Cada parte do seu corpo e da sua alma hão de então recobrar vida . Ele voltará a ficar de novo inteiro, como dizia Zambo. A cabeça, os olhos, as orelhas, os lábios. Os ombros, as costas, os braços, as mãos, o sexo. De nada mais ele tem necessidade, somente das mãos duras e quentes de Fatou sobre sua pele. Eles não se separarão mais, ficarão juntos para sempre, até a velhice."

( trecho do conto Barsa, ou Barsaq )