terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

UM OUTRO AMOR - KARL OVE KNASGARD


"Na manhã seguinte voltei ao Lasse i Parken. Coloquei um bloco de anotações em cima da mesa e comecei a escrever uma carta para Linda. Escrevi a respeito de quem ela era para mim. Escrevi a respeito de quem ela tinha sido para mim quando a vi pela primeira vez, e a respeito de quem era agora. Escrevi a respeito dos lábios dela, que deslizavam para cima dos dentes quando ela se empolgava, escrevi a respeito dos olhos dela, que cintilavam e revelavam uma escuridão e por assim dizer tragavam a luz para dentro de si. Escrevi a respeito da maneira como ela andava, a respeito dos movimentos discretos e dignos de uma modelo que ela fazia com o traseiro. Escrevi a respeito das feições discretas e japonesas. Escrevi a respeito da risada que às vezes tomava conta dela  e a respeito do quanto eu a amava nesses instantes. Escrevi a respeito das palavras que ela usava com frequência , a respeito de como eu amava o jeito que ela tinha de dizer estrelas e de espalhar a palavra "incrível" ao redor. Escrevi que todas essas coisas eram apenas o que eu tinha visto, e que eu mal conhecia, não tinha a menor ideia a respeito do que ela pensava e sabia pouco sobre a maneira como via o mundo e as outras pessoas, mas que o que tinha visto era suficiente, eu sabia que a amava e que sempre haveria de amá-la".

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Expurgo - SOFI OKSANEN


"Mais tarde Aliide ouviu histórias de campos cobertos de dolomita e trens cheios de crianças chorosas sendo evacuadas, soldados tirando as famílias de suas casas e estranhos flocos que caíam , estranhamente brilhantes , cobrindo os jardins. As crianças tentavam tocá-los ainda no ar, as menininhas queriam usá-los de enfeite nos cabelos, mas os flocos logo desapareciam, assim como os cabelos delas. Um dia a senhora Prik agarrou Aliide pelo braço no mercado e sussurrou-lhe ao ouvido: ainda bem que o meu filho quebrou a perna. Ainda bem que ele soube fazer isso. Disse que os amigos do filho, os que haviam sido convocados, tinham contado o que acontecera lá, e não estavam nem um pouco contentes com o alto pagamento que receberam em Chernobyl, temendo sofrer os efeitos da radiação. Tinham visto pessoas inchadas a ponto de ficarem irreconhecíveis. Pessoas lamentando a perda de seu lar, fazendeiros voltando secretamente para trabalhar nos campos na zona proibida. Casas esvaziadas e saqueadas, os bens vendidos no mercado da praça , motocicletas e casacos de lã da Crimeia. Haviam matado cães e gatos, e enchido intermináveis valas com seus corpos. O fedor de carne apodrecida, de casas, árvores e terra queimada, as camadas de terra varridas, cebolas, repolhos e arbustos transformados em caroços. As pessoas se perguntavam se era o fim do mundo, uma guerra, ou ambos? Contra quem estavam lutando, e quem venceria? Velhas senhoras se persignavam sem parar, tomando incontáveis litros de vodca ou aguardente caseira.
E, acima de tudo, a senhora Prik ressaltou que um rapaz dizia a quem estava partindo: nunca contem a ninguém sobre Chernobyl, porque qualquer mulher ou homem vai lhes dar um pé na bunda depois disso. Nunca contem a ninguém, porque ninguém vai querer filhos com vocês. A senhora Prik disse que o filho dela tinha um amigo cuja esposa terminara o casamento e fora embora com as crianças porque não queria que ele as tocasse e as contaminasse. Outro dos homens de Chernobyl foi deixado pela mulher depois que ela começou a ter pesadelos, sonhando com bezerros de três cabeças nascendo um após o outro, gatos com escamas em vez de pelos, porcos sem pernas. Não conseguia mais suportar aqueles pesadelos e não suportava ficar perto do marido, por isso partiu em busca de um homem mais saudável.
Ouvindo sobre aquelas mulheres que tinham se livrado dos maridos como se fossem lixo, Aliide ficou assustada, o susto se transformou em tremor, e ela começou a olhar com novos olhos os jovens que encontrava pelas ruas, procurando os que tinham retornado e reconhecendo neles algo familiar. Dava para ver neles um olhar sobre o qual pairava uma sombra, e ela tinha vontade de colocar as mãos na bochechas deles, de tocá-los.


Martin Truu acabou desfalecendo no jardim enquanto examinava com uma lupa uma folha de bétula. Quando Aliide encontrou o marido e virou seu corpo para o céu, viu a última expressão que ele tinha no rosto. Era a primeira vez que ela o via surpreso.