terça-feira, 9 de agosto de 2011

Amuleto - Roberto Bolãno



"Ai, lembrar disso me faz rir. Que vontade de chorar! Estou chorando? Vi tudo e, ao mesmo tempo, não vi nada. Entendem o que quero dizer? Sou a mãe de todos os poetas e não permiti ( ou o destino não permitiu ) que o pesadelo me desmontasse. As lágrimas agora escorrem por minhas faces estragadas. Eu estava na faculdade naquele 18 de setembro em que o exército violou a autonomia e entrou no campus para prender ou matar todo o mundo. Não. Na Universidade não houve muitos mortos. Foi em Ilatelolco. Esse nome há de ficar em nossa memória para sempre! Mas eu estava na faculdade quando o exército e os granadeiros entraram e baixaram o cacete na gente.Coisa mais incrível. Eu estava no banheiro, num dos banheiros de um dos andares da faculdade, o quarto, creio, não posso precisar.Estava sentada na latrina , com a sia arregaçada, como diz o poema ou a canção, lendo aquelas poesias tão delicadas de Pedro Garfias, que tinha morrido fazia um ano, dom Pedro tão melancólico, tão triste da Espanha e do mundo em geral, quem iria imaginar que eu estaria lendo no banheiro justo no momento em que aqueles granadeiros babacas entravam na universidade. Acho, permitam-me este inciso, que a vida está repleta de coisas enigmáticas, pequenos acontecimentos que só estão esperando o contato epidérmico , nosso olhar para se desencadearem numa série de fatos causais que, depois, vistos através do prisma do tempo, não podem deixar de produzir em nós assombro e espanto. De fato, graças a Pedro Garfias, aos poemas de Pedro Garfias e a meu inveterado vício de ler no banheiro , fui a última a saber que os granadeiros tinham entrado, que o exército tinha violado a autonomia universitária e que, enquanto minhas pupilas percorriam os versos daquele espanhol morto no exército , os soldados e granadeiros estavam preenchendo e baixando o cacete em todo o mundo que encontravam pela frente, sem que importasse sexo ou idade, condição civil ou status adquiridos ( ou presenteado ) no intrincado mundo das hierarquias universitárias."

( Auxilio Lacouture , artista meio hippie e louca, imigrante uruguaia, andarilha - personagem inspirada na pintora Alcira, que de fato escapou da repressão ao se esconder por semanas no banheiro feminino de um dos andares da Faculdade de Filosofia e Letras em setembro de 1.968 ).

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Meu Tio - Jean - Claude Carrière - romance baseado no filme de Jacques Tati

" Cortar, torrar, adoçar, apimentar, salgar, pressionar e arrumar, cortar, torrar...sanduíches e petits-fours, pernil de cordeiro recheado, presunto cru, presunto cozido e presunto light, fatias de tomate, um pouco de gema de ovo e salada verde...
Geladeira abarrotada, cozinha trepidante, especiarias, condimentos, azeitonas pretas, azeitonas verdes e pepinos em conserva...Bandejas estreitas, engradados, cavaletes, cubos de gelo se chocando, vidros e canudinhos, cinzeiros , pratinhos, garfinhos, faquinhas, guadanapinhos de papel...
O chá, o suco de frutas, a água mineral, as mesinhas para copos, contar cadeiras, recontar...Cortar, tostar, adoçar, apimentar, salgar...
- Georgette!!
- Pois não, senhora.
-Preciso de ajuda! Não vê que assim eu nunca vou terminar?! Você deixa tudo para eu fazer, é inacreditável! Charles ! A campainha!
- Onde?
- No portão, oras! Me ajude !
Meu pai abandonando o cestinho e o alicate, ligou o chafariz e abriu o portão. Apareceu um árabe na entrada do jardim, lá longe, um vendedor de tapetes carregando retalhos coloridos.
Eu mesmo, naquele dia, me deixei levar por aquela confusão toda.
- Pode deixar - disse meu pai, cortando o jato do chafariz.
- O que é ?
- Nada, nada. Não se preocupe.
O árabe estava plantado imóvel na entrada do jardim. Agitava de leve a mercadoria, mas não dava para entender o que estava dizendo: tinha muito barulho na casa.
Meu pai berrou:
-Não, não precisamos de nada!
O árabe cabeça-dura não ia embora e continuava a sacudir os tapetes flamejantes.
-Não,não vamos comprar tapetes! - berrou meu pai, levemente nervoso. - O que o senhor quer?...Mas eu já disse...Já temos tudo!...Como? ...Não estou ouvindo! Como? Oh!
Vi meu pai empalidecer e entendi na mesma hora que ele.
Ele se ergueu com desespero até o botão do chafariz e disse, na direção da cozinha:
- É a vizinha..."

( o pai confundindo a vizinha com um vendedor árabe e ainda tantas outras confusões que ainda aconteceriam na garden-party que a mãe de Gérard estava preparando. Um livro leve e divertido, uma delícia !! ).

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A Maleta Do Meu Pai - Orhan Pamuk


" Mas a literatura nunca é uma preocupação apenas nacional. O escritor que se recolhe e antes de mais nada empreende uma viagem para dentro de si mesmo haverá de descobrir ao longo dos anos a regra eterna da literatura: é preciso ter o talento de contar as próprias histórias como se fossem histórias dos outros, e contar as histórias dos outros como se fossem suas, porque é isso a literatura. Mas antes é preciso viajar pelas histórias e pelos livros de outros."

( trecho do discurso da cerimônia de entrega do prêmio nobel de literatura de 2007).

" O anjo da inspiração ( que visita regularmente alguns e raramente outros ) favorece os escritores dotados de esperança e confiança, e é quando o escritor se sente mais só, quando ele mais duvida dos seus esforços, dos seus sonhos e do valor do que escreve - quando acha que a sua história é só a sua história - é em momentos assim que o anjo decide revelar-lhe histórias, imagens e sonhos que irão evocar o mundo que ele pretende construir. Quando penso nos livros a que dediquei toda minha vida, o que mais me surpreende são esses momentos em que eu sentia que as frases, os sonhos e as páginas que me deixavam tão arrebatado de felicidade não vinham da minha imaginação, que era outro poder que as encontrava e, generoso, me presenteava com elas."

( muitas vezes me senti sozinha enquanto escrevia meu projeto de um livro infantil e também várias vezes achava que minhas histórias eram apenas minhas, sem nada de especial e quando me senti assim tão sozinha fui agraciada com esse anjo e ele me abençoou! Lindos depoimentos nesse livro de Orhan Pamuk , que homenageia seu pai ).

GRande Sertão : Veredas - João Guimarães Rosa


" Diz que  direi ao senhor o que nem tanto é sabido : sempre que se começa a ter amor a alguém , no ramerrão , o amor pega e cresce é porque , de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia , querendo e ajudando, mas , quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente inteiriço fatal, carente de querer, e é um facear com as surpresas. Amor desse , cresce primeiro; brota é depois."

" Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que ás vezes adivinhei insensatamente - tentação dessa eu esparecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos."

" Todos os sucedidos acontecendo , o sentir forte da gente - o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim - Mas Diadorim era um sentimento meu."

( As filosofias de amor de Riobaldo - que achei tão lindas...)