quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Filomena Firmeza - Patrick Modiano


"Neva hoje em Nova York. Pela janela do meu apartamento, na rua 59 , vejo o prédio em frente onde fica a escola de dança que eu dirijo. Por trás da fachada envidraçada, as alunas de collant terminam suas pontas, meias-pontas e entrechats .
Minha filha, que trabalha como minha assistente , mostra a elas um passo de jazz, para descontrair.
Daqui a pouco vou me juntar a elas.
Entre as alunas, há uma menina que usa óculos. Ela os deixou sobre uma cadeira antes de começar a aula, como eu fazia com essa mesma idade nas aulas da senhora Dismailova. Não se dança de óculos. Eu me lembro de que, na época da senhora Dismailova, eu treinava durante o dia para conseguir ficar sem os óculos. O contorno das pessoas e das coisas perdia a nitidez, tudo se tornava desfocado, até os sons pareciam mais abafados. O mundo, quando eu os via sem os óculos, perdia a aspereza. Ficava tão suave e macio quanto um travesseiro fofo no qual encostava o rosto e terminava de adormecer.
- Está sonhando com o quê, Filomena? - papai me perguntava. - Você deveria pôr os óculos.
Eu obedecia e tudo retomava a rigidez e a precisão costumeiras. De óculos, eu via o mundo tal como ele era. Não podia mais sonhar."



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Clube da Luta - Chuck Palahniuk


"A carcaça explodida e queimada de meu apartamento parece o espaço sideral, negro e devastado na noite acima as luzes da cidade. Como as janelas se foram, uma fita amarela da polícia se contorce e balança no limite de uma queda de quinze andares.
 Acordo no chão de concreto. Antes havia um carpete de madeira. Havia quadros nas paredes antes da explosão. Havia mobílias suecas. Antes de Tyler.
 Estou vestido. Ponho a mão no bolso e sinto.
 Estou inteiro.
 Com medo, mas inteiro.
 Vá até a beirada, quinze andares acima do estacionamento , olhe para as luzes da cidade e para as estrelas e desapareça.
 Tudo está tão distante.
  Aqui em cima, nos quilômetros de noite que existem entre as estrelas e a Terra, sinto como se fosse um daqueles animais espaciais.
 Cães.
 Macacos.
 Homens.
Você só faz sua pequena tarefa. Puxa uma alavanca. Aperta um botão. Você não entende nada aquilo de verdade.
 O mundo está ficando louco. Meu chefe está morto. Minha casa se foi. Meu trabalho se foi. E sou responsável por tudo isso.
 Não sobrou nada.
 Estou negativo no banco.
 Vá até a beirada.
 A fita amarela da polícia flutua entre mim e o esquecimento.
 Vá até a beirada.
 O que mais sobrou?
 Vá até a beirada.
 Sobrou a Marla.
 Pule da beirada.
 Tem a Marla e ela está no meio disso tudo e não sabe.
 E ela ama você.
 Ela ama Tyler.
 Ela não sabe a diferença entre vocês.
 Alguém tem que dizer a ela. Fuja.Fuja.Fuja.
 Salve-se.
 Você desce de elevador até o saguão e o porteiro que nunca gostou de você sorri mostrando a falta de três dentes perdidos por socos e diz:
 -Boa noite, senhor Durden. Posso chamar um táxi? Está se sentindo bem? Quer usar o telefone?
 Você liga para Marla no Regent Hotel.
 O atendente do Regent diz:
 -Pois, não, sr. Durden.
Então Marla surge na linha.
O porteiro está ouvindo ao seu lado. O atendente do Regent provavelmente também está ouvindo.
Você diz a Marla que precisam conversar.
 -Vai lamber merda - ela responde.
 Você diz que ela pode estar em perigo. Que merece saber o que está acontecendo. Vocês precisam conversar.
 - Onde?
Você deve ir ao lugar onde nos encontramos pela primeira vez. Lembre-se dele. Pense no passado.
 Na bola de luz branca curativa. No palácio das sete portas.
 _Entendi. Consigo chegar lá em vinte minutos.
 Esteja lá.
 Você desliga e o porteiro fala:
_Posso conseguir um táxi para você, senhor Durden. De graça e para onde quiser ir.
Os garotos do clube da luta o estão vigiando. Você diz que não, é uma bela noite e acha que vai caminhar."

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Aquela Água Toda - João Anzanello Carrascoza

"Quando percebeu, o sol era suave, a praia se despovoava, as ondas se encolhiam. Hora de ir,disse o pai e começou a apanhar as coisas. A família seguiu para a avenida, o menino lá atrás , a pele salgada e quente , os olhos resistiam em ir embora. No ônibus , sentou-se à janela, ainda queria ver a praia, atento à sua paixão. Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas, prédios novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do ônibus, tão macio...Começou a sentir um torpor agradável , os braços doíam , as pernas pesavam, ele foi se aquietando, a cabeça encostada no vidro...
Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou assustado, o cobrador o sacudia abruptamente , Ei, garoto,acorda! Acorda, garoto!, um zunzunzum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus , entre os caiçaras, procurando num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão - e nada. Eram só faces estranhas.
Levantou-se , rápido no seu desespero, Seus pais já desceram, o cobrador disse e tentou acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade às pressas e, afobado, se meteu nela de qualquer jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo instante, intuindo seu desdobramento : se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só precisava voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...
Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-os com a prancha. O ônibus parou, aos trancos. O cobrador gritou, Desce, desce aí! O menino nem desceu os degraus, pulou lá de cima, caiu sobre um canteiro na beira da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu correndo pelo calçadão, os cabelos de sal ao vento, o coração no escuro. Notou com alívio, lá adiante, o pai que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua direção. Depois...depois não viu mais nada: aquela água toda em seus olhos."


lindo, todo o livro em todas as linhas, escrita com as palavras perfeitas em seus lugares certos...


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Histórias de Paris - Mario Benedetti


"E de repente se faz um silêncio. Um silêncio espesso depois de tanta conversa transparente. Estou sentado na beira do catre, e ela está perto, na minha única cadeira , com os cotovelos apoiados na minha mesa cambaia  e roída pelos cupins. Então a puxo. Suavemente, como quem recupera um projeto inconcluso, mas agora com mais tino, mais experiência, mais profundidade, mais vontade de torná-lo real. Ela se deixa abraçar e até diria que me abraça, entretanto,graças ao espelho onde faço a barba todos os dias, posso ver que está olhando de novo para o infinito. Então a afasto com todo o carinho de que disponho, que é bastante, e pego seu rosto entre as mãos. Estou abalado, mas mesmo assim encontro forças para lhe perguntar o que está acontecendo, o que há com ela. Murmura alguma coisa num tom  tão baixo que não consigo captar uma palavra. Pega a minha mão e a guia lentamente até seu suéter marrom, na realidade até um dos seus peitos sob a lã penteada.
Não sei por quê, mas entendo que aquele gesto não tem o significado mais óbvio. Os olhos que me olham estão secos. Não pode ser, não vai ser, não tem volta, entende?
Isso é o que diz. Não pode ser, por mim e por você. Isso é o que diz. Todas as paisagens mudaram, em toda parte há andaimes, toda parte há escombros. Isso é o que diz. Minha geografia, Roberto. Minha geografia também mudou. Isso é o que diz."

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Dentro do Segredo - José Luís Peixoto


" O meu coração existia dentro de mim. Todas as luzes estavam apagadas. Corri sozinho na direção do rio Taedong. Havia milhares e milhares de pessoas nas suas margens. Através do negro opaco, passava entre elas. A única claridade que vinha do céu, da enorme quantidade de foguetes que rebentavam havia quase uma hora ao longo de quilómetros de rio. Mas ali, ao meu lado,na escuridão total, ninguém baixava a voz ou o olhar quando me via, a minha presença não era sentida. Durante aqueles minutos, fui norte-coreano. Houve mesmo pessoas a dirigirem-se a mim , a dizerem-me qualquer coisa , sem esperarem resposta. Isto, que parece pouco, foi tudo para mim, encheu-me. Esse foi o momento mais intenso que vivi na Coréia do Norte."


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Uma Escuridão Bonita - Ondjaki


" - Vou te contar um segredo - ela começou.
  - Ainda conta - perdi o pirilampo de vista.
  - Dizem que quando um silêncio chega e fica entre duas pessoas...
  - Sim?
  - É porque passou um anjo e lhes roubou a voz.
  - Tu acreditas em anjos?
  - Tu não acreditas em silêncios?
  Fosse de esquecimento ou não, a mão dela tinha ficado ancorada na minha, concha e búzio nesse silêncio inventado pelos anjos.
  No brilho aceso do Universo, um candeeiro-estrela alumiou mais forte que os outros - em celebração de ofuscamento."


terça-feira, 16 de setembro de 2014

The World of Imagination - Lisbeth Zwerger


"Much has happened since I began working with Michael Neugebauer . My books have wandered around the world , people have liked them, and have been kind enough to award me prizes.
 I haven´t had to starve . Once, every word in public was agony for me, today I can sometimes handle appearing in front of small  groups or teaching.
Time has certainly taken its toll, but I have been fortunate to have been surrounded by people  Always  ready to help me. This has by now almost become a tradition.
The publishing industry has changed enormously , as has the entire book-Market . Looking back , my beginnings appear to have taken place in a better world . However , although we both have received our bumps and bruises , Michael Neugebauer has repeatedly managed to steer his boat safe Waters . Ouf of necessity ( but not only because of it ) new and fascinating  encounters have developed : with Japanese advertising people, Viennese kindergarten teachers , and Indian film producer, a famous Austrian writer and many other interesting people.
Sometimes there is discouragement but as time goes by you realize that if you let destiny run its course and continue to work steadily , taking your time , things will  Always sort themselves out. And this is the most wonderful thing: again and again, just when hope is almost extinguished , there is something new and fresh that strikes you: a poem, a story or a fairy tale. And that , though you may not to be conscious of it in the ups and downs of everyday life , is the crucial thing in the undertaking of Becoming  an Illustrator."



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Os Transparentes - Ondjaki


" O Cego sentia saudades das cores, de todas as cores
   isso de algum dia ter visto o mundo era uma lembrança  confusa - neblina de um sonho recentemente esquecido -, sentia dentro de si uma sólida saudade das cores , sabia imaginá-las , a quentura de um amarelo avermelhado , a tranquilidade de um azul céu, o rosa fresco da parte interna de um mamão, a brandura de um verde seco e até mesmo a simplicidade implacável do branco
_NganaZambi podia ainda me emprestar uma luz, e vez em quando só, nem que eu sempre tivesse a fingir que era ainda cego
_ está a falar mesmo sozinho, camarada Cego? - disse MariaComForça com simpatia na voz
_estava aqui com um pensamento , a senhora me escutou?
_nem entendi nada mesmo
_não era de entender, eu estava a lembrar cores
_então você já viu as cores
_sabe, as cores não são só de ver. há cores que eu sei na minha pele, nas minhas mãos. a vida tem muitos lugares..."



quarta-feira, 14 de maio de 2014

O Oceano no Fim do Caminho - Neil Gaiman


"_ Nada, nunca é igual (...) .Seja um segundo mais tarde ou cem anos depois. Tudo está sempre se agitando e se revolvendo. E as pessoas mudam tanto quanto os oceanos."

Saga - A história de quatro gerações de uma família japonesa no Brasil - Inoue Ryoki



" Desde o início da guerra no Pacífico , as notícias que chegavam do Japão, já bastante manipuladas pelos americanos , eram em parte distorcidas pela censura getulista e em parte pelos redatores dos principais jornais da colônia japonesa no Brasil. Nestes, as boas notícias - para os Aliados - eram publicadas em pequenas notas, e as que davam conta de uma vitória nipônica viravam manchetes em que, subliminarmente era possível notar o famoso yamato damashii ,o espírito japonês , que inclui a veneração pelo imperador e a consciência da absoluta invencibilidade do Japão.
Desde o ataque a Pearl Harbour , houve uma cisão na colônia japonesa no Brasil. De um lado, estavam os kachigumis , que acreditavam na vitória do Japão e, do outro lado, os makegumis , que não acreditavam nela ou simplesmente não se incomodavam com a vitória ou derrota de seu país de origem , tendo efetivamente assumido o Brasil como pátria. Essa divisão de opiniões , que, no início , limitava-se ás discussões e apenas eventualmente gerava alguma briga , tornou-se muito mais séria a partir de 1944, com a criação da Shindô-Renmei ( Liga dos Seguidores do Imperador ), e, depois a rendição japonesa , transformou-se em violência declarada dos kachigumis contra os makegumis.
Com sede no número 96 da Rua Pacatu, no Jabaquara, em São Paulo, a Shindô-Renmei atuou com muita intensidade inclusive no interior de São Paulo e do Paraná, criando 64 filiais nesses dois Estados, com um total de 30 mil sócios registrados e mais de 100 mil imigrantes e descendentes que apoiavam a manutenção a qualquer custo do  yamato damashii.
Era uma organização rica, pois doações não faltavam, e, com esses recursos , conseguiu montar uma infra-estrutura de divulgação bastante forte, incluindo pelo menos um grande jornal a colônia.
Porém a atuação da Shindô-Renmei , que teoricamente deveria estar limitada à preservação do lado cultural e tradicional do yamato damashii , foi focada numa terrível operação de limpeza, que incluía atos terroristas , atentados e até mesmo o assassinato de muitos makegumis.
Um dos fatores preponderantes para essa distorção de objetivos foi a forte presença de ex-militares japoneses entre os imigrantes nipônicos que vieram para o Brasil entre 1928 e 1933. Muitos deles vieram para cá tendo como missão exatamente criar nos países onde a colônia japonesa começava a ser significativa , tanto do ponto demográfico como do econômico , núcleos de resistência à dominação política e cultural do Ocidente. Tornaram-se membros da Shindô-Renmei e passaram a divulgar o yamato damashii literalmente impondo suas ideias ainda que de forma violenta. O líder da associação era Junji Kikawa, ex-oficial do Exército Imperial Nipônico e seguidor fanático da divindade representada pelo imperador Hirohito.
Nos meses que antecederam a rendição nipônica , os principais membros da Shindô-Renmei elaboraram uma lista dos makegumis que deveriam ser eliminados pelos integrantes da Tokko-tai , grupo-ação da organização. Essa relação era composta por centenas de isseis e nisseis que, na opinião de Kikawa e seus conselheiros , de alguma forma manifestavam-se a favor dos Aliados, mesmo que não militassem contra o imperador.
A Shindô-Renmei iniciou sua ação contra os makegumis com atentados terroristas contra as propriedades daqueles que, segundo Kikawa, estavam ajudando os americanos e, portanto, posicionando-se contra o Japão. Entre eles figuravam principalmente os produtores de seda - matéria-prima para a fabricação de pára-quedas - e os plantadores de menta, de onde era extraído um importante aditivo para o combustível dos aviões.
Em 07 de março de 1946, o primeiro makegumi da lista negra, a lista dos que deveriam morrer , Ikuta Mizobe, foi assassinado na cidade de Bastos, interior de São Paulo, por Satoru Yamamoto. A partir daí, 23 makegumis foram mortos e dezenas tiveram suas propriedades atingidas por atentados."

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ERa Uma Vez uma Capa - História Ilustrada da Literatura Infantil - Alan Powers


"Quem viveu durante a Segunda Guerra Mundial confirma o grande crescimento da leitura nesse período. Quer as pessoas estivessem em quartéis, abrigos ou simplesmente confinadas em casa devido ao perigo, aos blecautes e às limitações do transporte , havia pouco a fazer além de ler. Apesar da escassez de papel , novos livros eram produzidos e vendidos rapidamente . Para as crianças, a produção foi reduzida, e os editores se apoiaram fortemente nas reimpressões de textos antigos. Embora a série de HQ Rupert no Daily Express evitasse inteiramente o tema da guerra , autores renomados , como Richmal Crompton  e Angela Brazil, descobriram que era um tópico bem-vindo , apresentando contos relativamente inofensivos de espiões ou exilados.
  No entanto, nem toda atividade editorial era de alto padrão. Em um texto de 1952, o crítico Frank Eyre  lembrou : "Durante os anos da guerra , era impossível ter acesso a várias obras que figurariam em qualquer lista da literatura infantil moderna , e uma quantidade muito maior de livros  de qualidade inferior era produzida". Essa situação ficou ainda mais evidente porque a década de 1930 fora um período prolífico. Por outro lado, como observou o autor Geoffrey Trease, as restrições de papel significaram o fim do processo de "avolumar" artificialmente as edições, comum nos anos  anteriores ao conflito, e "os livros para criança sofreram um saudável processo de emagrecimento".
  Nos Estados Unidos a guerra não envolveu a população até 1941 e o país vivenciou um efeito menos devastador que na Inglaterra, portanto esse contratempo foi menos evidente."

O Velho que acordou menino - Rubem Alves


"Eu era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E eu não tinha com que comparar.  Bachelard observou que "a infância conhece a infelicidade através dos homens" ( A poética do devaneio, p.9 ). Ainda não havia aprendido com os adultos a arte maldita da comparação. Esperança é coisa de gente grande ,que vive no tempo, o passado, o presente, o futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente. Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente. Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança vive o momento. Eu só vivia o presente . Não tinha ansiedades. Meu irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: "O que nos resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai vendeu...". Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro. Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para nossas doideiras é ficar criança de novo."




quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

História do Pé e Outras Fantasias - J.M.G. Le Clézio



" O mar está bravo como há um ano, em fevereiro, no dia do naufrágio. As ondas verdes, com suas cristas eriçadas, rolam para a beira e vem rebentar na praia com um possante e grave bramido que toma a terra e o céu. Watson está deitado na areia, tem as pernas dobradas nos joelhos e a cabeça apoiada na barriga de Fatou. Estará dormindo? Bem, tem os olhos abertos, fita o céu azul-escuro por onde há nuvens passando. Dormir de verdade ele há muito tempo não dorme. Está tão magro e frágil, Fatou acha que até parece um menino. Na enfermaria de Tahiche , o interno disse que já havia algum tempo que ele se negava a comer. Sem razão, sem pedir nada a ninguém , a partir de certo dia não tocou mais na porção de arroz com peixe, nem nas frutas ou no pão. Suas rações eram comidas pelos outros presos, para os quais ele nem mesmo olhava. Bebia um pouco de água, e só. Quando Fatou chegou à prisão, Watson estava no soro. Ela falou com uns e outros, assediou funcionários, assistentes sociais , conselheiros. Graças à permissão de residência  em nome de Zambo, eles a ouviram. Inventou que estava chegando do Brasil, uma procura feita na polícia, jornais. Falou de Mahama, a vida dele em Gorée, deu os nomes dos coiotes , dos seus itinerários , denunciou Omar , o Filósofo, o pretenso Simon Frantz Fanon Taylor. O dinheiro que ele recebe dos jovens,a mentira que ele conta sobre Barsa ou barsaq , Barcelona ou a Morte.
    Como eles não sabiam o que fazer de Mahama - Watson , entregaram-no a ela. Tinham medo de que acabasse morrendo , já havia oito mortos na nova penitenciária de Tahiche , organizações não governamentais se punham à espreita do escândalo , como Jail Watchers , Norborder.org., Earth Times, Gabriel del Grande, do mesmo modo que os jornais , La Opinión , El Día, Tenerife News, todos prontos a falar disso na rede, e cabeças poderiam rolar.
    Fatou conseguiu trabalho em Los Cedros, uma pousada para ingleses ociosos em Los Cocoteros, e um quartinho nas dependências de empregados. Como a cama era muito estreita , pôs dois colchões no chão. Foi ali que Watson passou seus primeiros dias de liberdade , sem sair, quase sem se mexer, a não ser para ir ao banheiro comum do outro lado do bloco. De noite, quando o vento do mar bate nas palmeiras , como antes em Gorée, no quarto rosa. Sem pensar em nada, sobretudo não no futuro , Fatou ouve a respiração de Watson. Só uma coisa lhe interessa , o instante no qual ele despertará. Cada parte do seu corpo e da sua alma hão de então recobrar vida . Ele voltará a ficar de novo inteiro, como dizia Zambo. A cabeça, os olhos, as orelhas, os lábios. Os ombros, as costas, os braços, as mãos, o sexo. De nada mais ele tem necessidade, somente das mãos duras e quentes de Fatou sobre sua pele. Eles não se separarão mais, ficarão juntos para sempre, até a velhice."

( trecho do conto Barsa, ou Barsaq )

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Contos de Lugares Distantes - Shaun Tan


Chuva ao Longe

"Você já se perguntou o que acontece com todos os poemas que as pessoas escrevem? Aqueles poemas que elas não deixam ninguém ler?
  Talvez eles sejam pessoais  e particulares demais.
  Talvez não sejam bons o bastante.
  Talvez a mera sensação de que alguém possa ler uma manifestação tão sincera seja vista como :
   deselegante,
   frívola, boba, pretensiosa, melosa, banal, sentimental,
   trivial, tediosa, excessiva ,obscura, , inútil, estúpida,
   ou apenas vergonhosa.
   É o suficiente para dar a qualquer aspirante a poeta boa razão para esconder sua obra dos olhos do público. Para sempre.
  (...)
  Com tempo + sorte a bola de poesia se torna grande, imensa, enorme:
  um vasto acúmulo de pedaços de papel que acaba subindo ao ar , levitando apenas com a força de tanta emoção não dita.
   Infelizmente,
   uma grande bola de papel, não importa o quão grande e flutuante , ainda é algo frágil.
   Mais cedo ou mais tarde ela será surpreendida por uma rajada de vento, castigada por chuva forte e reduzida , em questão de minutos, a um bilhão de tiras molhadas.
    Uma manhã, todos acordarão para ver uma polposa sujeira cobrindo os jardins, entupindo sarjetas e encobrindo para-brisas. O trânsito ficará prejudicado. As crianças, encantadas. Os adultos,perplexos, incapazes de conceber de onde veio tudo aquilo.
     Ainda mais estranho será descobrir que cada massa de papel molhado contém diversas palavras desbotadas, prensadas, em versos acidentados.
     Quase invisíveis, mas inegavelmente presentes. E para cada leitor vão cochichar uma coisa diferente.
     Coisas alegres, coisas tristes,
     verdadeiras,
     absurdas,
     hilárias, profundas e perfeitas.
     Ninguém será capaz de explicar a estranha sensação de leveza, nem o sorriso escondido que perdura.
     Mesmo que os varredores de rua  vem e vão."


( textos lindos que acompanhados das ilustrações torna o livro perfeito!)



segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Diário de Berlim Ocupada - 1945- 1948 - Ruth Andreas - Friedrich



" Sexta-feira, 19 de outubro de 1945

Em Nuremberg , é formado um tribunal internacional para julgar "os principais criminosos de guerra do Eixo." Isto é, os principais criminosos de guerra que não escaparam à condenação internacional. Hitler, Himmler, Goebbels e Bormann, os verdadeiros chefões, não vão se sentar no banco dos réus.
Hitler suicidou-se. Goebbels deu um tiro na cabeça. Himmler envenenou-se. Bormann teve fim misterioso e desconhecido. Vinte e quatro acusados. O julgamento deverá começar em trinta dias. O texto das acusações preenche sete páginas densamente impressas no jornal. Extermínio de judeus, crimes contra a humanidade; crimes contra a paz; assassinato de reféns; maus tratos de prisioneiros de guerra; eutanásia; câmaras de gás; campos de concentração; trabalho escravo;  masmorras.
Um conglomerado de atrocidades humanas. Como isso não nos enraivece e envergonha? Observando as pessoas folhearem indiferentemente o vergonhoso documento de sete páginas , fica-se com a impressão de que aquilo nada tem a ver com elas. Nem os crimes, nem os criminosos , tampouco a culpa ou a punição.
"Incompreensível!" - dizem os aliados. "Absolutamente desconcertante! Onde está o ódio que, supostamente, consumia milhões de alemães?'
(...)
O destino nos escamoteou a represália particular. Agora alguns chefões estão sendo julgados. Não por nós, mas por um tribunal estrangeiro. E pela perdida represália particular temos de nos ajustar a uma nebulosa culpa coletiva. Demasiadamente nebulosa para embaraçar seriamente o alemão comum. Demasiadamente coletiva para ser entendida como responsabilidade individual."

sábado, 11 de janeiro de 2014

Memórias de uma moça malcomportada - Bianca Lamblin


" Para definir suas relações , Sartre e Simone de Beauvoir tinham inventado um termo bizarro: segundo eles, haviam contraído um "matrimônio morganático" , expressão bastante pomposa para referir-se a "uma união contraída por um príncipe com uma mulher de condição inferior". Essa maneira de qualificar tal pacto revelava a ambiguidade de ambos sobre o assunto: recusavam-se a aceitar o rito do casamento, mas sentiam-se obrigados a forjar um  substitutivo . Eu tinha muita dificuldade em entender por que , quando se amava um homem como ela amava Sartre, se recusava  a dormir sob o mesmo teto ou desejar não ter filhos dele. Eu podia ver que a vida de hotel e as refeições em restaurantes economizavam muito tempo, e admitia que Simone não tivesse nenhum  gosto ou disposição para as tarefas domésticas. Mas, quanto à ideia de ter filhos, eu ainda não havia percebido a que ponto a simples hipótese de uma criança repugnava , de modo visceral, tanto a um quanto a outro."

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A Brincadeira Favorita - Leonard Cohen




 "Assim como a neblina não deixa marcas
 Na colina verde-escura
 Meu corpo também não deixa marcas
 No seu, nem nunca deixará.

 Quando vento e uivo se encontram,
 O que sobra?
 Assim é o nosso encontro,
 Depois nos viramos, e pegamos no sono.

 Assim como há noites que ficam
 Sem lua, sem estrela,
 Assim ficaremos
 Quando um de nós tiver partido."

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Cidades de Papel - John Green

 
"-Vou mandar um e-mail para você quando chegar em casa , e espero uma resposta .
 - Prometo que vou responder . A gente se vê . A gente ainda vai se encontrar de novo.
 - No final do verão, talvez eu possa encontrar você em algum lugar , antes do início das aulas da faculdade - digo.
 - É - responde ela. - Boa ideia.
Sorrio e aceno. Ela se vira de costas para mim e fico me perguntando se está sendo sincera , então vejo seus ombros tremerem . Está chorando.
- Até mais, então. Vou escrever para você enquanto isso - digo.
- É - responde ela sem se virar, a voz embargada. - Eu também.
Dizer essas coisas é o que nos impede de desmoronar . E, talvez, ao imaginar esses futuros, a gente possa torná-los reais, ou não; de qualquer forma temos que imaginá-los . A luz sai e nos inunda."



( outro livro incrível do John Green ).


Um Gato de rua chamado Bob - James Bowen



"Viver nas ruas de Londres desnuda sua dignidade , sua identidade - sua totalidade , de fato. O pior de tudo, desnuda a opinião das pessoas a seu respeito. Elas veem que você está vivendo nas ruas e o tratam como uma não pessoa. Não querem ter nada a ver com você . Em pouco tempo, você passa a não ter  sequer um amigo de verdade no mundo. Enquanto estava dormindo ao relento , consegui um emprego para trabalhar como porteiro de uma cozinha . Mas eles me demitiram quando descobriram que eu era um sem-teto , embora não houvesse feito nada de errado no trabalho. Realmente , quando não se tem uma moradia, tem-se muito poucas chances.
A única coisa que poderia ter me salvado seria voltar para a Austrália. Tinha uma passagem de volta, mas perdi meu passaporte duas semanas antes do voo. Não tinha a documentação e, além disso, não tinha dinheiro para providenciá-la . Qualquer esperança que tivesse de voltar para minha família na Austrália desapareceu. E assim, de certa forma, eu também.




( infelizmente essa realidade não pertence apenas a Londres... )