terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A Hora da Estrela - Clarice Lispector


"Havia coisas que não sabia o que significavam . Uma era "efeméride" . E não é que Seu Raimundo só mandava copiar com sua letra linda a palavra efemérides ou efeméricas ? Achava o termo efemérides absolutamente misterioso. Quando o copiava prestava atenção a cada letra . Glória era estenógrafa e não só ganhava mais como não parecia se atrapalhar com as palavras difíceis das quais o chefe tanto gostava. Enquanto isso a mocinha se apaixonara pela palavra efemérides.
Outro retrato : nunca recebera presentes. Aliás não precisava de muita coisa. Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo , dado a literatura , deixara sobre a mesa. O título era "Humilhados e Ofendidos". Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social . Pensou, pensou, pensou! chegou á conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera , tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?
Pergunto eu : conheceria ela algum dia do amor o seu adeus? Conheceria algum dia do amor os seus desmaios? Teria a seu modo o doce voo? De nada sei. Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só . A nordestina se perdia na multidão . Na praça Mauá onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho havia contra o vento. Ah mas existiam os navios cargueiros que lhe davam saudades quem sabe de quê . Isso só ás vezes. Na verdade saía do escritótio sombrio, defrontava o ar lá de fora, crepuscular, e constatava então que todos os dias á mesma hora fazia exatamente a mesma hora."

( primeiro assisti o filme baseado no livro então Macabéa ganhou esse rosto, e não a esqueci mais. Lindo livro, lindo filme. )

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Desonra - J.M. Coetzee

" Em inglês moderno , friend , amigo , do inglês antigo freond, do verbo freon , amar."


( só uma frase, e linda ! )

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Viérotchka - Anton Tchekhov

" Amolecido, Ogniov beijou , mais uma vez o velho e começou a descer a escada. No último degrau, voltou a cabeça e perguntou :
_ Ainda nos veremos um dia?
_ Deus sabe! - respondeu o velho.- Provavelmente nunca!
_Sim, é verdade! Não se consegue atraí-lo a São Petersburgo nem com pão de leite, e eu dificilmente virei  parar mais uma vez neste distrito. Bem, adeus!
_Deveria deixar aqui os livros! - gritou-lhe Kuznietzov. - Para que precisa carregar esse peso? Eu mandaria para a sua casa amanhã, por um criado.
Mas Ogniov não o ouvia mais, afastando-se rapidamente da casa. A sua alma, aquecida pelo álcool, estava ao mesmo tempo alegre, tépida e triste...Caminhando, pensava em quão frequentemente encontra-se na vida gente boa e como é lamentável que esses encontros não deixem nada, além de recordações. Acontece aparecerem num repente cegonhas no horizonte, a brisa ligeira traz os seus gritos entre tristonhos e eufóricos ,e, num instante depois, por mais avidamente que fixemos a vista nos longes azuis, não vemos um ponto, não ouvimos um som sequer : assim também as pessoas, com os seus semblantes, as suas falas, aparecerem ligeiramente na vida e submergem em nosso passado, não deixando mais que as pegadas insignificantes da memória. Vivendo desde a primavera no distrito de N. e visitando quase diariamente os cordiais Kuznietzov, Ivan Alieksiéitch acostumou-se como um parente ao velho, á filha, aos criados, aprendeu a conhecer até nos mínimos detalhes toda a casa, o terraço aconchegado , as curvas das alamedas do jardim, as silhuetas das árvores sobre a cozinha e a casa dos banhos; mas daqui a um instante ele passará o portão, e tudo isso se transformará em recordação, perdendo para sempre a significação real, e, passados ainda um ano ou dois, todas essas imagens queridas hão de empalidecer na consciência, a par das invenções e dos frutos da fantasia.
"Na vida, não existe nada mais caro que as pessoas!", pensava emocionado Ogniov, caminhando pela alameda, em direção ao porão. "Nada!"

( trecho do conto Viérotchka - do livro As Três Irmãs e contos - Anton P. Tchekhov )

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Não Se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo - Nelson Rodrigues

" O mais importante, o fundamental, você tem : ama e é amada . E se quer obter um mínimo de felicidade, parta, sempre , do seguinte princípio : - o verdadeiro amor não pode ser integralmente feliz . Você sabe qual é o verdadeiro erro da maioria absoluta das mulheres? Ei-lo : achar que o fato de amar implica, obrigatoriamente, a felicidade. Quem ama, pensa que vai ser felicíssimo ; e estranha qualquer espécie de sofrimento . Ora, a vida ensina, justamente, que duas criaturas que se amam, sofrem , fatalmente. Não por culpa de um ou de outro; mas em consequência do próprio sentimento. É exato que os amores tem seus êxtases deslumbrantes , momentos perfeitos , musicais, etc, etc. Mas eu disse "momentos" e não as 24 horas de cada  dia. Quando uma mulher apaixonada se queixa, eu tenho a vontade de fazer-lhe a seguinte pergunta: "Não lhe basta amar? Você quer, ainda por cima, ser feliz?". Pois o destino , quando concede a graça inefável do amor ,subtrai uma série de outras coisas. Antes de mais nada, o sossego. Quem ama, não tem sossego, perde-o , para sempre. A intensidade de qualquer amor é , por si mesma, trágica."



( Nelson Rodrigues , ops, Myrna num de seus conselhos amorosos ).

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A Borra do Café - Mario Benedetti


" Só numa ocasião a praia Capurro, em geral tão desprezada , ficou cheia de gente e de bicicletas. Foi quando o dirigível passou por aqui. O Graf Zeppelin. Aquela espécie de liguiçona prateada, imóvel no espaço, foi considerada admirável, quase mágica por todo o mundo adulto; para nós, em compensação, era uma coisa normal. Mais ainda: o assombro dos adultos nos parecia bobo. Vê-los todos de boca aberta, olhando para cima, provocava em nós um riso tão contagioso que aos poucos foi se transformando na gargalhada de toda uma geração. Os pais , tios e avós sentiram-se tão ofendidos com as risadas que os tapas e beliscões começaram a chover sobre as nossas frágeis anatomias. Uma injustiça histórica que jamais vamos esquecer."

(  trecho do capítulo "O dirigível e o Dândi )