quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll


"Sim,íamos à escola no mar,embora você talvez não acredite.."
"Nunca falei que não acredito!",interrompeu Alice.
"Falou sim", disse a Tartaruga Falsa.
"Cale-se!",acrescentou o Grifo,antes que Alice pudesse falar de novo.A Tartaruga Falsa continuou.
"Tivemos a melhor das educações...na verdade,íamos à escola todos os dias..."
"Eu também já frequentei uma escola diária",disse Alice."Não precisa se orgulhar tanto disso."
"Com extras?",perguntou a Tartaruga Falsa,um pouco ansiosa.
"Sim",disse Alice,"estudávamos francês e música."
"E lavagem?", disse a Tartaruga Falsa.
"Claro que não!",disse Alice indignada.
"Ah! Então a sua escola não era realmente boa",disse a Tartaruga Falsa, num tom de grande alívio."Na nossa,eles tinham,no final do boletim,francês,música e lavagem-extra".
"Vocês não deviam precisar muito disso",disse Alice,"vivendo no fundo do mar."
"Eu não tinha os meios para fazer esse curso",disse a Tartaruga Falsa com um suspiro."Só fiz o curso regular."
"E qual era o curso regular?",perguntou Alice.
"Lerdear e Esquivar,para início de conversa",respondeu a Tartaruga Falsa,"e depois os diferentes ramos da Aritmética - Ambição, Distração,Amiudação e Derrisão".
"Nunca ouvi falar de 'Amiudação'",Alice se arriscou a dizer."O que é?"
O Grifo levantou as duas patas surpreso.
"Nunca ouviu falar de amiudar!",exclamou.
"Você sabe o que significa agrandar,não?"
"Sim",disse Alice em tom de dúvida."Significa...tornar...algo...maior".
"Bem, nesse caso",continuou o Grifo,"se não sabe o que é amiudação,você é uma pateta".

( trecho da conversa entre Alice,o Grifo e a Tartaruga Falsa - Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll )

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Na praia - Ian McEwan


"Quando pensava nela,parecia-lhe surpreendente que tivesse deixado aquela garota com seu violino ir embora.Agora,é claro,via que a proposta recatada que ela lhe fizera era totalmente irrelevante.Tudo aquilo que ela precisava era da certeza do amor dele,e da sua garantia de que não havia pressa,pois tinham a vida pela frente.Amor e paciência - se pelo menos ele tivesse conhecido ambos ao mesmo tempo - certamente os teriam ajudado a vencer as dificuldades.E que dizer das crianças que poderiam ter tido,e da menininha com um arco no cabelo que poderia ter se tornado sua filha querida?É assim que todo o curso de uma vida pode ser desviado - por não se fazer nada.Na praia de Chesil,ele poderia ter gritado o nome de Florence,poderia ter ido atrás dela.Ele não sabia,ou não teria querido saber,que,enquanto ela fugia,certa na sua dor de que o estava perdendo,nunca o amara tanto,ou mais desesperadamente,e que o som da voz dele teria sido seu resgate,e que ela teria voltado atrás.Em vez disso,ele permaneceu num silêncio frio e honrado,na penumbra do verão, a observá-la em sua precipitação ao longo da orla,o som do seu avanço difícil perdendo-se entre o das pequenas ondas a quebrar na praia,até ela ser apenas um ponto borrado,desaparecendo na estrada estreita e infinita de seixos brilhando sob a luz pálida."

( Na Praia - Ian McEwan )

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Cemitério de Pianos - José Luiz Peixoto


"_ Em princípio, telefonamos ainda hoje.Telefonamos logo que o seu marido falecer."
Foi assim que a enfermeira disse.Sem reparar talvez que a minha mulher já não era ninguém.Sem reparar que as palavras que lhe dizia se perdiam sem eco dentro da sua escuridão.
Ás nove horas da noite,o telefone tocou.O telefone tocou durante um momento que foi muito longo,porque ninguém o queria atender,porque todos tinham medo de o atender.O telefone tocou.O som atravessou a casa e o peito da minha mulher,da Maria e do Francisco.Quem atendeu foi o marido da Maria.
_Sim,sim.Está bem.Eu digo - Aproximou-se dos meus filhos e da minha mulher e disse-lhes.
O Hermes tinha acabado de nascer.
As palavras foram:
_Nasceu o menino da Marta.
O Hermes tinha acabado de nascer.
No hospital, A Marta estava a descansar.E ninguém sabia como ficar feliz,mas a felicidade era tão forte e crescia de dentro deles.Era como se tivessem uma nascente de água no peito e a felicidade fosse essa água.Houve um milagre que fez lágrimas.E tinham as mãos pousadas sobre o peito.Tinham as pálpebras fechadas muito devagar sobre os olhos para sentirem a chuva branda dessa felicidade que os cobria,inundava.
Passou uma hora.O telefone tocou de novo.
Eu tinha acabado de morrer.

( passagem narrada pelo personagem Lázaro - Cemitério de Pianos - José Luiz Peixoto )

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Notícias do mês de maio


"É tempo de arraso,a batida
no falso Museu da Espécie,
aqui estão as notícias
Maio 68 Maio 68
O poema do dia o efêmero e recorrente fogo de artifício
ardendo na França e na Alemanha
no Rio em Buenos Aires em Lima e em Santiago
os estudantes em assalto
em Praga e em Milão em Zurique e em Marselha
os estudantes cheios de pombos de pólvora
os estudantes que erguem com suas mãos nuas
os paralelepípedos de cimento e estatística
para apedrejar o Grande Costume
e na ordenada cibernética
abrir de par em par janelas como seios."

"Exagerar já é um começo de invenção"
(inscrição na Faculdade de Letras de Paris,maio de 1968 )

"Meus Desejos São a Realidade"
(Nanterre)

"Desabotoe Seu Cérebro Tantas Vezes Quanto a Braguilha"
( Teatro Odeon,Paris )

"Sexo,Tudo Bem,Disse Mao,Mas Não Tão Frequente"
(Faculdade de Letras,Paris )

"Sejam Realistas: Peçam o Impossível."
( Faculdade de Letras,Paris )

" A Revolução é Incrível Porque é Verdadeira"
( Faculdade de Letras,Paris )

"Amai-vos uns sobre os outros."
( Faculdade de Letras,Paris )

" Decreto o Estado De Felicidade Permanente"
( Faculdade de Ciências Políticas,Paris )

"Sim,nossos sonhos
mais uma vez os sonhos batendo como galhos na tempestade
nas janelas cegas
mais uma vez os sonhos
a certeza de que Maio
pôs no ventre da noite
um sêmen de canção de tocha a chamada
terna e selvagem do amor que olha ao longe
para inventar a alvorada o horizonte."

"Dormindo se Trabalha Melhor: Formem Comitê de Sonhos."
(Sorbonne)

( Notícias de Maio - Último Round - Tomo I - Julio Cortázar )

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Dama do cachorrinho - Anton P. Tchekhov


"Passaria um mês,mais ou menos,e Ana Sierguéievna,tinha a impressão,cobrir-se-ia de bruma em sua memória, e somente de raro ia aparecer-lhe em sonho, com seu tocante sorriso,tal como outras apareciam.No entanto, decorreu mais de um mês chegaram os rigores do inverno,mas tudo permanecia nítido na memória,como se a separação de Ana Sierguéievna tivesse sido na véspera.E as recordações tornavam-se cada vez mais intensas.Quer lhe chegassem ao escritório, em meio à quietude do anoitecer, as vozes das crianças, que preparavam a lição, quer ouvisse um órgão ou uma canção no restaurante, o vento soprasse na lareira, tudo ressuscitava, de repente, em sua memória: o que sucedera no quebra-mar, o amanhecer com aquela névoa sobre as montanhas, o navio chegando de Feodóssia,os beijos.Passava muito tempo caminhando pelo quarto e recordando,sorria e, depois, as lembranças transformavam-se,em sua imaginação,ao que viria ainda.Não sonhava mais com Ana Sierguéievna, ela o acompanhava por toda parte,como uma sombra , e vigiava-o.Fechando os olhos,via-a e ela parecia mais bonita,mais jovem,mais terna do que fora realmente; e ele próprio aparecia melhor do que tinha sido naqueles dias de Ialta. Ao anoitecer, ela o espreitava de dentro do armário de livros,da lareira, do canto da sala, ele ouvia sua respiração,o frufru carinhoso de suas roupas.Na rua, acompanhava mulheres com o olhar,procurando alguma que a ela se assemelhasse..."


( A Dama do Cachorrinho e outros contos - Anton P. Tchekhov )

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

As Relações Perigosas - Choderlos de Laclos


"...Consagro-me a isso por inteiro; a partir deste momento eu me dou a vós e não tereis, de minha parte, nem recusas nem lamentos.Foi com essa candura ingênua ou sublime que ela me ofereceu sua pessoa e seus encantos e aumentou minha felicidade,partilhando-a. A embriaguez foi completa e recíproca.E pela primeira vez, a minha sobreviveu ao prazer. Só saí de seus braços para cair a seus pés e jurar-lhe um amor eterno;e,deve-se confessar tudo,acreditava no que dizia.Finalmente,mesmo depois de nos separarmos,sua lembrança não me largava e tive necessidade de trabalhar para me distrair."

Paris,neste 29 de outubro de 17**

( Carta CXXV do Visconde de Valmont à Marquesa de Marteuil )

( As Relações Perigosas - Choderlos de Laclos )

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Aquela voz - Ítalo Calvino


"Aquela voz certamente vem de uma pessoa única,inimitável como qualquer pessoa,porém uma voz não é uma pessoa,é algo de suspenso no ar,destacado da solidez das coisas.Também a voz é única e inimitável,mas talvez num outro modo diferente da pessoa:poderiam voz e pessoa ,não se parecer.Ou então assemelhar-se de um modo secreto, que não se vê á primeira vista: a voz poderia ser o equivalente daquilo que a pessoa tem de mais oculto e de mais verdadeiro.É um você próprio sem corpo que escuta aquela voz sem corpo?Então que você a escute de fato ou a relembre ou a imagine,não faz diferença.
Contudo,você quer que seja o seu próprio ouvido a perceber aquela voz,portanto o que o atrai não é somente uma lembrança ou uma fantasia mas a vibração de uma garganta de carne.Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva,garganta,tórax,sentimentos,que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes.Uma voz põe em jogo a úvula,a saliva, a infância,a pátina da existência vivida, as intenções da mente,o prazer de dar uma forma própria ás ondas sonoras.O que o atrai é o prazer que esta voz põe na existência - na existência como voz - , mas esse prazer o conduz a imaginar o modo como a pessoa poderia ser diferente de qualquer outra tanto quanto é diferente a voz."

( trecho do conto Um Rei à Escuta do livro Sob o Sol-Jaguar - Ítalo Calvino )

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Ninguém tem culpa - Julio Cortázar


"Não quer abrir os olhos absurdamente , mas sabe que pulou para fora,essa matéria fria,essa delícia é o ar livre,e não quer abrir os olhos e espera um segundo,dois segundos,deixa-se viver em um tempo frio e diferente ,o tempo do lado de fora do pulôver,está de joelhos e é belo estar assim,até que,pouco apouco,reconhecidamente entreabre os olhos livres da baba azul da lã do lado de dentro,entreabre os olhos e vê as cinco unhas negras suspensas apontando para seus olhos,vibrando no ar antes de saltar contra seus olhos, e tem tempo de baixar as pálpebras e jogar-se para trás , cobrindo-se com a mão esquerda que é sua mão,que é tudo o que lhe resta para se defender de dentro da manga,para que puxe para cima a gola do pulôver e a baba azul envolva outra vez seu rosto,enquanto se levanta para fugir a outra parte,para chegar afinal a alguma parte sem mão e sem pulôver,onde somente haja um ar ruidoso que o envolva e o acompanhe e o acaricie e doze andares."

( do conto Ninguém tem culpa - Julio Cortázar - Final do Jogo )

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A Estepe - Anton Tcheckov


" Todos se puseram a olhar o horizonte e a procurar a raposa com os olhos,mas não viram.Apenas os olhinhos de Vássia podiam ver essas coisas e extasiava-se.Iegóruchka convenceu-se,depois,que a vista de Vássia era extraordinariamente aguda.Via tão bem que a estepe castanha,para ele, estava sempre cheia de vida e de conteúdo.Bastava-lhe fixar os olhos na distância para ver uma raposa,uma lebre ou uma abetarda ou outro qualquer animal desses que se escondem dos homens.É fácil ver uma lebre que foge,ou uma abetarda que voa,essas coisas que qualquer um que viaje pela estepe pode ver,mas não é qualquer um que consegue observar os animais selvagens na intimidade,quando não fogem,não se escondem e não olham inquietos para os lados.Vássia já tinha visto raposas brincando,lebres lavando-se com as patinhas,abetardas estendendo as suas asas preguiçosamente,aves das estepe que acertavam seus "pontos".Graças a essa capacidade visual,além do mundo que todos viam,para Vássia era possível ver um outro mundo seu,inacessecível aos demais e, provavelmente, muito bom, porque quando se punha a observá-lo,extasiado,era difícil não o invejar.
Quando a caravana retomou sua marcha os sinos da igreja chamavam para a missa."

( A Estepe - Anton Tcheckov )

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

o diário de andrés fava - julio cortázar


"Um céu baixo,branco,translúcido,tão próximo de mim que se movo a cabeça o sentirei no cabelo,nas orelhas.Não é o céu,é o lençol de minha cama de verão.Tenho dez anos e viajo por dentro da minha cama.

Havia ali um espaço hostil mas estranhamente pacificado,na qual os perigos não ameaçavam de verdade,embora sua presença exigisse a luta, o cálculo sagaz, a rápida palmada da circunstância. Dois guerreiros iam com o menino adiantando batidas e abrindo caminho;suas mãos cresciam na paisagem interior,manchadas de sombras musgosas(meu pijama verde!),logo independentes das tarefas formais de ser apenas mãos.Aranhas,tendas de campanha,lansquenetes gordos,cavalinhos de microscópio,os dois iam e vinham prazerosamente,e o mínimo inventava guerras para o seu duplo exército: batalhas de mãos que duravam horas ( horas de céus de lençol,porque era ali que eu tinha o meu tempo,minha luz e minha vontade).
Mitologia da cama,com seus Jablewochies e seus selenitas.Sem saber direito,eu tinha a suspeita de que meu lençol me salvava de uma realidade igualmente cheia de prazeres mas de imediato ameaçada por rudezas,por deveres penosos,por vergonhas,pela servidão atroz da infância nas mãos do carinho e da educação.Como uma enorme pálpebra clara,bastava-me baixar o lençol sobre tanta sensibilidade esfolada para sentir-me livre,a caminho de um sonhar mais belo do que o sonho,porque admitia ser inventado e dirigido.Hoje suspeito que aquelas brincadeiras eram oníricas,que o melhor de suas luzes,dos seus achados e suas peripécias vinham da própria invenção que ilumina os sonhos merecedores de recordação."

( O diário de Andrés Fava - Julio Cortázar )

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

crônica de uma morte anunciada - Gabriel García Márquez


"Certa madrugada de ventos,no décimo ano, acordou-a a certeza de que ele estava nu em sua cama.Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte páginas e na qual deitou sem pudor as amargas verdades que guardava apodrecidas no coração desde a sua funesta noite.Falou-lhe das marcas eternas que ele havia deixado em seu corpo, do sal da sua lingua, da trilha de fogo de sua verga africana.Entregou-a à funcionária do correio que, nas sextas-feiras á tarde,ia bordar com ela para levar as cartas,e convenceu-se de que aquele desabafo final seria mesmo o último de sua agonia.Mas não houve resposta.A partir de então já não tinha consciência do que escrevia nem a quem escrevia;continuou,porém,escrevendo sem quartel durante 17 anos.
Em um meio-dia de agosto,enquanto bordava com as amigas,sentiu que alguém chegava à sua porta.Não precisou olhar para saber quem era."Estava gordo,o cabelo tinha começado a cair e já precisava de óculos para ver de perto",disse-me."Mas era ele,porra,era ele!"
Assustou-se porque sabia que ele a estava vendo tão decaída como ela o via,e não acreditava que tivesse dentro tanto amor como ela para se conformar.Estava com a camisa empapada de suor,como o tinha visto a primeira vez na feira,e levava o mesmo cinto e os mesmos alforjes de couro cru com adornos de prata.Bayardo San Román deu um passo á frente,sem se preocupar com as outras bordadeiras atônitas,e pôs os alforjes na máquina.
-Bem, disse - aqui estou.
Levava a mala de roupa para ficar e outra mala com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera.Estavam ordenadas por datas,em pacotes amarrados com fitas coloridas,e todas sem abrir."

( Crônica de uma morte anunciada- Gabriel Garcia Márquez )

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Beijo de amigos


"...Joji,você tem sido um bom menino- dizia ela, com fingida seriedade.- Vou dar-lhe um beijo - Embora eu soubesse muito bem que zombava de mim,retribuia,quando ela oferecia seus lábios;mas então,ela fugia no último segundo e soprava uma baforada de ar dentro de minha boca a uma distância de cinco a sete centímetros.
-Este é um beijo de amigos-dizia,com sorriso irônico.
Esse cumprimento peculiar,que ela chamava de "beijo de amigos", no qual eu tinha de aceitar seu sopro em vez de seus lábios,passou a ser um hábito entre nós."

"Embora tenha dito que temia suas tentações, a verdade é que esperava ansiosamente por elas.Mas essas tentações jamais iam além da tola brincadeira de amigos que ela continuava a fazer."

( Naomi - Junichiro Tanizaki )

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O Diário de Andrés Favas


"Unilateralidade, mão única do homem.Sente-se que viver significa projetar-se num sentido (e o tempo é a objetivação dessa linha única).Não podemos senão avançar por um corredor onde as janelas ou as grades são o incidental naquilo que realmente importa: a marcha para um extremo que (já que o corredor somos nós mesmos) nos vai distanciando cada vez mais do ponto de partida, das etapas intermediárias...E escrevo e não sei dizer como dizer: sentir que minha vida e eu somos duas coisas e que se fosse possível tirar a vida como se tira o casaco, pendurá-la por algum tempo no encosto da cadeira seria necessário saltar planos, escapar da projeção uniforme e contínua. Depois vestí-la de novo ou procurar outra.É muito chato que só tenhamos uma vida ou que a vida tenha apenas um modo de acontecer. Por mais que possamos preenchê-la de fatos, embelezá-la com um destino bem planejado e realizado, o molde é um só: quinze anos,vinte e cinco,quarenta - o corredor.
Levamos a vida como levamos os nossos olhos, do modo que nos modela; os olhos veem o futuro do espaço, assim como a vida é sempre a dianteira do tempo."

(trecho de Diário de Andres Favas - Julio Cortázar )

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Ana Karênina


"Ana respirou outra vez a plenos pulmões o ar frio,e,já com a mão na portinhola do compartimento ,de novo se preparava para embarcar quando um homem de capote militar se aproximou,ocultando a luz do farol.Ana observou-o e reconheceu Vronski.Este levou a mão ao barrete,inclinou-se e perguntou-lhe se lhe podia ser útil em alguma coisa.Ana olhou-o um momento sem responder.Embora ele estivesse de costas para a luz,julgou ver-lhe nos olhos e na fisionomia a expressão de respeitoso entusiasmo que tanto a impressionara na véspera.Acabava de dizer para si mesma,depois de o repetir tantas e tantas vezes naqueles últimos dias,que Vronski,para ela,era um rapaz como outro qualquer que encontrava por todos os lados na sociedade,e em quem nunca permitiria pensar,e eis que, de repente,ao vê-lo,apoderavam-se dela a alegria e o orgulho.
Não precisava de lhe perguntar por que estava ali.Estava ali,sabia-o com toda a certeza,como se lho tivesse dito,evidentemente para se encontrar com ela.
_Não sabia que tinha de ir a São Petersburgo! Que vai fazer lá? - perguntou Ana, deixando descair a mão, que se firmara já no varão da portinhola.
A animação e a alegria,uma animação e uma alegria indizíveis,resplandeciam-lhe no rosto.
_Que vou fazer lá? - repetiu Vronski, fitando-a nos olhos.-Bem sabe que vou para estar junto da senhora.Não posso fazer outra coisa."

(diálogo entre Ana Karênina e Vronski -do romance Ana Karênina(1873/77 )-Leon Tolstoi)

terça-feira, 16 de junho de 2009

O Espelho


"Ao chegar em casa, diz-lhe a mulher:
-Bom dia, meu marido.Trouxe-me o que lhe pedi?
-Naturalmente.Aqui está.
E o chinês dá o pacote á mulher, que apressadamente o abre.Essa mulher nunca tinha visto um espelho.E vendo nele um vulto de mulher,fica indignada:
-Meu marido, comprou outra mulher!
E Mel de Crisântemo chorou todas as lágrimas de seu pequenino coração.Os soluços chamam a atenção de sua mãe.
-Ah! mamãe,mamãe- grita ela. -
Venha ver.Meu marido trouxe para casa outra mulher.
A mãe toma o espelho, olha-o e diz á filha:
-Fica sossegada: é tão velha e tão feia!"

( trecho co conto O Espelho - Sacha Guiltry - Maravilhas do Conto Russo )

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Uma Brincadeira


"Certa vez, ao anoitecer - faltavam uns dois dias para a minha viagem - estava eu sentado no jardim, que um alto tapume com pregos separa do pátio da casa de Nadia...Ainda está bastante frio, há restos de neve no solo, as árvores continuam adormecidas, mas já cheira a Primavera e os corvos, preparando-se para a noite, armam uma grande algazarra.Aproximo-me do muro e, durante muito tempo, espreito por uma fenda.Vejo Nadia sair para o terraço e dirigir ao céu um olhar
aflito,plangente...O vento primaveril sopra-lhe na cara pálida e triste.Ele traz-lhe a recordação daquele outro vento que nos silvara nos ouvidos no escorregadouro, onde ouvira aquelas palavras de amor; o rosto de Nadia torna-se melancólico, e uma lágrima corre-lhe pela face...A pobre moça estende ambos os braços, como que rogando ao vento que lhe traga outra vez aquelas palavras.E, logo que o vento sopra na direção dela, digo:
_Amo-a,Nadia!
Meu Deus, que reação aquilo provocou nela!Solta um grito, abre-se num largo sorriso e estende os braços ao encontro do vento, alegre,feliz,tão linda...
Eu volto para dentro, para fazer as malas...
Isto passou-se há muito tempo.Nadia já está casada; casaram-na ou casou-se - vem dar ao mesmo - com um funcionário qualquer e tem três filhos.
Não esqueceu como outrora escorregamos nem as palavras que o vento lhe levava:
"Amo-a,Nadia". Para ela, essa é a mais feliz, a mais comovedora e bela recordação da vida...
E eu, agora mais velho, já não sei para que dizia aquelas palavras, para que brincava..."

( trecho do conto "Uma Brincadeira" de 1886 de Anton P. Tchekhov - Contos e Novelas)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O Arco


"O velho quebrou um ramo seco e colocou-o no arco.
Um gramado brilhante,sereno,estendia-se na sua frente e nas folhas recentemente cortadas brilhavam as gotas de orvalho, incontáveis e variegadas.
De repente, o velho bateu com o pedaço de pau no arco e começou a correr.Ria de alegria, correndo atrás do arco como o menino. Sacudia as pernas, alcançava o arco com o pedaço de pau, levantando-o acima da cabeça, como a criança havia feito.
Parecia-lhe que mais uma vez ele próprio era uma criancinha delicada e feliz. Sua mãe ia seguindo-o, olhando-o com um terno sorriso. A princípio sentiu, como uma criança, um ligeiro arrepio na floresta escura, no gramado alegre e na relva macia.
A barba cinzenta, como a de um bode, balançou-se no rosto estragado, e a um tempo o riso e a tosse espoucaram da boca desdentada.
Pela manhã o velho gostava de ir á floresta para brincar com o arco no gramado. Ás vezes temia que o pudessem ver, que rissem, e com essa ideia se apoderava dele um invencível sentimento de vergonha. E a vergonha estava próxima do medo e as suas pernas tornavam-se fracas, e sob ele se vergavam. Então olhava em redor cautelosamente, com a cara envergonhada.
Mas nada - ninguém o vira, ninguém o escutava...E, já tendo brincado, até o coração encher-se de alegria, voltou tranquilamente para a cidade, com um claro e feliz sorriso nos lábios.
E assim ninguém o viu; e nada mais aconteceu. Durante vários dias brincou pacificamente. Depois numa manhã orvalhada, apanhou um resfriado, foi para a cama e morreu. Quando morria, no hospital da fábrica, entre pessoas estranhas e indiferentes, sorriu serenamente.
Estava confortado com a ideia de que ele também havia sido criança, tinha pulado na grama fresca sob as árvores sombrias enquanto a mãe querida o contemplava"

( trecho do conto "O Arco" - do escritor russo Fedor Sologub - Maravilhas do Conto Russo )

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A conversão do diabo


"O sacerdote moribundo olhava cheio de alegria a seu redor, e se entregava a suas recordações. O sol desaparecia pouco a pouco.
_ Amo também Florença, esta formosa cidade em que vivi tanto tempo - continuou o sacerdote.- Agradava-me sentir sob meus pés as pedras tépidas de suas calçadas. Ah! meu amigo, quando se anda pela terra setenta anos, esta se torna em alguma coisa assim como nossa mãe, e até suas pedras perdem a dureza...E isto que estou dizendo será ainda mais certo ali, onde vou agora...
O diabo soltou um suspiro, o sacerdote, que continuava em seus braços, sentiu-o; compreendeu a dor do diabo e lhe disse com morimbunda entonação:
_ Não suspires...Não se desesperes...É muito possível, meu amigo, que também vás ao Paraíso...porque és...um diabo...muito bom...
O sol verteu manchas sangrentas pelo céu, empurrando o horizonte e extinguido-se. O velho sacerdote extinguiu-se com o sol. Morreu, abandonando sua querida Florença e todas aquelas terras, que tanto amava.
Desesperado o diabo esforçava-se por despertá-lo, falando-lhe com voz rude e áspera:
_ E as estrelas, meu padre? O senhor não viu ainda a lua, que está quase a surgir no horizonte, e vai projetar, neste instante,sua pálida luz sobre as lajes da sua amada Florença. Abra os olhos, meu padre! Suplico-lhe...
Quando compreendeu que tudo estava findo, e que o amigo e protetor estava bem morto, transportou-o para baixo, para sua alcova. E enquanto o levava , em seus braços, pensava: "Subi com ele vivo ao campanário, e o desço morto!"
Uma dor profunda apoderou-se da alma do diabo. Agitava-se, chorava, gemia, uivava como um animal feroz, arrepelando os cabelos: não estava acostumado à dor humana, e manifestava-o de forma ridícula. Tão grande era o seu desespero que, apanhando seu único tesouro - o manuscrito despedaçado - o atirou a um canto. No entanto, ao fazer isso, não compreendeu que, precisamente naquele instante, se realizava o bem, esse bem intangível, que ele procurava com tanto afã e á custa de tantos e tão grandes sofrimentos. E não compreendeu em toda a sua vida".

( trecho do lindo conto "A conversão do diabo" do escritor russo Leônidas Andreiev - Maravilhas do Conto Russo )

segunda-feira, 25 de maio de 2009

LO.LI.TA


"Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da lingua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve no terceiro, de encontro aos dentes. Lo.li.ta.
Era lo, apenas Lo, pela manhã, com suas meias curtas e seu metro e quarenta e oito centímetros de altura.
Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era Dolores quando assinava o nome. Mas, em meus braços, era sempre Lolita."

( Humbert Humbert descrevendo Lolita-romance de Vladimir Nabokov publicado em 1955 )

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Reparação


"Controlando-se, Cecília disse: " Isso já está durando semanas...". Sua garganta apertou, e ela foi obrigada a se interromper. Imediatamente Robbie julgou entender o que ela dizia, porém reprimiu a ideia.
Ela respirou fundo e prosseguiu, num tom mais pensativo: " Talvez meses. Não sei. Mas hoje...o dia inteiro foi muito estranho. Quer dizer, estou vendo as coisas de uma maneira estranha, como que pela primeira vez. Tudo parece diferente - nítido demais. Até as minhas mãos pareciam diferentes.Às vezes era o contrário, era como se as coisas que eu estava vendo tivessem acontecido fazia anos.E o dia inteiro eu estava furiosa com você - e comigo.Eu pensava que eu ia ficar feliz se eu nunca mais visse você nem falasse com você.
Eu pensei que você ia pra faculdade de medicina e que eu ia ser feliz.
Eu estava furiosa com você. Acho que era uma maneira de não pensar nisso. Muito prático, até..."

( diálogo entre Cecília e Robbie no romance Reparação de Ian McEwan )

quinta-feira, 30 de abril de 2009

A morta


" Eu amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento , no coração um único desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente , que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte , que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte como uma prece."

( A Morta - Guy de Maupassant )

quarta-feira, 15 de abril de 2009



"Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse , e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você."

( O Jogo da Amarelinha - Julio Cortázar )

terça-feira, 7 de abril de 2009

O Barão nas Árvores


" Conheceram-se. Ele a conheceu e a si próprio, pois na verdade jamais soubera quem fosse. E ela o conheceu e a si própria , pois , mesmo já se conhecendo nunca pudera se reconhecer assim."

( O Barão nas Árvores - Ítalo Calvino )

domingo, 5 de abril de 2009

D.H. Laurence


" A vida só é suportável quando o corpo e mente estão em harmonia e existe um equilíbrio e um respeito naturais entre eles."


D.H. Laurence

sábado, 4 de abril de 2009

Senhora de Marelle


"...De repente percebeu a Senhora de Marelle, e a lembrança de todos os beijos que lhe dera, que ela lhe devolvera , a memória de todas as suas carícias , suas gentilezas , o som da sua voz, o gosto de seus lábios, fez-lhe correr pelo sangue o desejo brusco de a retomar. Ela estava linda, elegante, com o seu ar garoto e seus olhos trêfegos. Georges pensava: " que amante encantadora, apesar de tudo."

( Bel Ami - Guy de Maupassant )

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Os três Mosqueteiros



"Encontrou Athos e Aramis filosofando. Aramis tinha planos de voltar á batina. Athos, como de hábito, não o dissuadia nem o animava. Achava que se devia deixar a cada um o exercício do livre-arbítrio. Nunca dava conselhos sem que lhos pedissem. E, ainda assim, era preciso pedir duas vezes.
_Em geral - dizia- só se pedem conselhos para não os seguir, ou quando os seguem, para ter alguem que se possa censurar por havê-los dado."

( Os Três Mosqueteiros - Alexandre Dumas )

terça-feira, 31 de março de 2009

A Loucura


" Na realidade, que seria a vida, se lhe tirássemos o prazer? Deixaria de merecer o próprio nome de vida.
Instante a instante, a vida seria triste, aborrecida, enfadonha, insípida, insuportável, se a ela não se misturasse o prazer, isto é, a Loucura.
Segundo os Estóicos, a Sabedoria consiste em deixar-se guiar pela razão, a Loucura em deixar-se ir ao sabor das paixões."

( A Loucura - Erasmo de Roterdam )

Sófocles

"Quanto menos prudência e sabedoria, maior a felicidade"

Sófocles - poeta grego

F. Dostoievski


" Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?"

( Noites Brancas - F. Dostoievski)

Ássia


"Amanhã serei feliz! A felicidade não conhece o amanhã, nem mesmo o ontem, não se lembra do passado nem pensa no futuro, ela tem o presente - ainda assim, não um dia, mas um átimo."

( Ássia - Ivan Turguêniev )