quarta-feira, 26 de agosto de 2009

o diário de andrés fava - julio cortázar


"Um céu baixo,branco,translúcido,tão próximo de mim que se movo a cabeça o sentirei no cabelo,nas orelhas.Não é o céu,é o lençol de minha cama de verão.Tenho dez anos e viajo por dentro da minha cama.

Havia ali um espaço hostil mas estranhamente pacificado,na qual os perigos não ameaçavam de verdade,embora sua presença exigisse a luta, o cálculo sagaz, a rápida palmada da circunstância. Dois guerreiros iam com o menino adiantando batidas e abrindo caminho;suas mãos cresciam na paisagem interior,manchadas de sombras musgosas(meu pijama verde!),logo independentes das tarefas formais de ser apenas mãos.Aranhas,tendas de campanha,lansquenetes gordos,cavalinhos de microscópio,os dois iam e vinham prazerosamente,e o mínimo inventava guerras para o seu duplo exército: batalhas de mãos que duravam horas ( horas de céus de lençol,porque era ali que eu tinha o meu tempo,minha luz e minha vontade).
Mitologia da cama,com seus Jablewochies e seus selenitas.Sem saber direito,eu tinha a suspeita de que meu lençol me salvava de uma realidade igualmente cheia de prazeres mas de imediato ameaçada por rudezas,por deveres penosos,por vergonhas,pela servidão atroz da infância nas mãos do carinho e da educação.Como uma enorme pálpebra clara,bastava-me baixar o lençol sobre tanta sensibilidade esfolada para sentir-me livre,a caminho de um sonhar mais belo do que o sonho,porque admitia ser inventado e dirigido.Hoje suspeito que aquelas brincadeiras eram oníricas,que o melhor de suas luzes,dos seus achados e suas peripécias vinham da própria invenção que ilumina os sonhos merecedores de recordação."

( O diário de Andrés Fava - Julio Cortázar )

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

crônica de uma morte anunciada - Gabriel García Márquez


"Certa madrugada de ventos,no décimo ano, acordou-a a certeza de que ele estava nu em sua cama.Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte páginas e na qual deitou sem pudor as amargas verdades que guardava apodrecidas no coração desde a sua funesta noite.Falou-lhe das marcas eternas que ele havia deixado em seu corpo, do sal da sua lingua, da trilha de fogo de sua verga africana.Entregou-a à funcionária do correio que, nas sextas-feiras á tarde,ia bordar com ela para levar as cartas,e convenceu-se de que aquele desabafo final seria mesmo o último de sua agonia.Mas não houve resposta.A partir de então já não tinha consciência do que escrevia nem a quem escrevia;continuou,porém,escrevendo sem quartel durante 17 anos.
Em um meio-dia de agosto,enquanto bordava com as amigas,sentiu que alguém chegava à sua porta.Não precisou olhar para saber quem era."Estava gordo,o cabelo tinha começado a cair e já precisava de óculos para ver de perto",disse-me."Mas era ele,porra,era ele!"
Assustou-se porque sabia que ele a estava vendo tão decaída como ela o via,e não acreditava que tivesse dentro tanto amor como ela para se conformar.Estava com a camisa empapada de suor,como o tinha visto a primeira vez na feira,e levava o mesmo cinto e os mesmos alforjes de couro cru com adornos de prata.Bayardo San Román deu um passo á frente,sem se preocupar com as outras bordadeiras atônitas,e pôs os alforjes na máquina.
-Bem, disse - aqui estou.
Levava a mala de roupa para ficar e outra mala com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera.Estavam ordenadas por datas,em pacotes amarrados com fitas coloridas,e todas sem abrir."

( Crônica de uma morte anunciada- Gabriel Garcia Márquez )