quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Manoel por Manoel


" Eu tenho um ermo enorme bem dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba . Mas não havia vizinho . Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto . Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas . De uma infância livre e sem comparamentos . Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança , a gente faz comunhão : de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças , de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas . Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor."

( o doce Manoel de Barros no livro Memórias Inventadas - Terceira Infância )

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