quinta-feira, 6 de agosto de 2009

crônica de uma morte anunciada - Gabriel García Márquez


"Certa madrugada de ventos,no décimo ano, acordou-a a certeza de que ele estava nu em sua cama.Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte páginas e na qual deitou sem pudor as amargas verdades que guardava apodrecidas no coração desde a sua funesta noite.Falou-lhe das marcas eternas que ele havia deixado em seu corpo, do sal da sua lingua, da trilha de fogo de sua verga africana.Entregou-a à funcionária do correio que, nas sextas-feiras á tarde,ia bordar com ela para levar as cartas,e convenceu-se de que aquele desabafo final seria mesmo o último de sua agonia.Mas não houve resposta.A partir de então já não tinha consciência do que escrevia nem a quem escrevia;continuou,porém,escrevendo sem quartel durante 17 anos.
Em um meio-dia de agosto,enquanto bordava com as amigas,sentiu que alguém chegava à sua porta.Não precisou olhar para saber quem era."Estava gordo,o cabelo tinha começado a cair e já precisava de óculos para ver de perto",disse-me."Mas era ele,porra,era ele!"
Assustou-se porque sabia que ele a estava vendo tão decaída como ela o via,e não acreditava que tivesse dentro tanto amor como ela para se conformar.Estava com a camisa empapada de suor,como o tinha visto a primeira vez na feira,e levava o mesmo cinto e os mesmos alforjes de couro cru com adornos de prata.Bayardo San Román deu um passo á frente,sem se preocupar com as outras bordadeiras atônitas,e pôs os alforjes na máquina.
-Bem, disse - aqui estou.
Levava a mala de roupa para ficar e outra mala com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera.Estavam ordenadas por datas,em pacotes amarrados com fitas coloridas,e todas sem abrir."

( Crônica de uma morte anunciada- Gabriel Garcia Márquez )

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