se eu pudesse leria todos os livros que gosto pra ti, como não posso, escrevo as palavras encantadas que me encantaram.
terça-feira, 23 de agosto de 2016
Na Escuridão,amanhã - Rogério Pereira
"Atravessei a fronteira,mãe.Não retornarei. Sei que é impiedoso, covarde, dizer-lhe: prefiro a guerra, os tiros, o estrondo frio da morte, os corpos despedaçados, os mortos amontoados, a esta nossa família;ou tua, ou dele. Pouco importa de quem seja esta família, este ensaio malsucedido de agrupamento.
Você não é culpada. O pai nos levou até aí. Nunca nos perguntou nada, nunca nos ouviu. Sempre fomos marionetes na mão dele, ventríloquos mudos à porta do inferno. Ele nos moldou a todos num barro ruim, num barro que não dava liga, não grudava. Aos poucos só podia acontecer: ruímos. Nossas pilastras se despedaçaram. Não havia sustentação. A nossa casa era a de palha. Veio abaixo pelas nossas fraquezas e silêncios. E pelo pecado. Deveríamos tê-lo enfrentado. Uma única vez. Seria diferente? Duvido. Ele sempre foi um tirano dos mais ordinários. Um tirano que nos obrigava a chamá-lo de "pai". O que é um pai? Nunca saberemos. Mas agora não adianta inundar as entranhas com o veneno da maledicência. Não retornarei. Ele nos carregou para o meio da inferno. Até parecia querer testar a maldição do nosso nascimento."
segunda-feira, 22 de agosto de 2016
Baudolino - Umberto Eco
"O reencontro deles foi tímido e comovido. Seus olhos brilhavam de felicidade, mas logo baixou pudicamente o olhar. Sentaram-se no meio das ervas. Acácio pastava tranquilo ali perto. As flores em volta perfumavam mais do que o habitual, e Baudolino sentia-se como se mal tivesse tocado o burq com os lábios. Não ousava falar, mas decidiu fazê-lo porque a intensidade daquele silêncio o levaria a algum gesto inconveniente.
Só então compreendeu por que ouvira dizer que os verdadeiros amantes, em seu primeiro colóquio de amor, empalidecem, tremem e emudecem. Isso porque o amor, ao dominar ambos os reinos da natureza e da alma, atrai para si todas as suas forças, não importa como se mova. Assim, quando os verdadeiros amantes, se reúnem, o amor perturba e quase petrifica todas as funções do corpo, tanto físicas como espirituais: razão pela qual a língua se recusa a falar, os olhos a ver, os ouvidos a ouvir, e cada membro subtrai-se ao próprio dever. Isso faz com que, quando o amor, demora-se muito no fundo do coração, o corpo, desprovido de força, morre. Mas numa certa altura o coração pela impaciência do ardor que vive, quase lança para fora de si a sua paixão, permitindo ao corpo retomar as próprias funções. Daí, o amante fala."
Só então compreendeu por que ouvira dizer que os verdadeiros amantes, em seu primeiro colóquio de amor, empalidecem, tremem e emudecem. Isso porque o amor, ao dominar ambos os reinos da natureza e da alma, atrai para si todas as suas forças, não importa como se mova. Assim, quando os verdadeiros amantes, se reúnem, o amor perturba e quase petrifica todas as funções do corpo, tanto físicas como espirituais: razão pela qual a língua se recusa a falar, os olhos a ver, os ouvidos a ouvir, e cada membro subtrai-se ao próprio dever. Isso faz com que, quando o amor, demora-se muito no fundo do coração, o corpo, desprovido de força, morre. Mas numa certa altura o coração pela impaciência do ardor que vive, quase lança para fora de si a sua paixão, permitindo ao corpo retomar as próprias funções. Daí, o amante fala."
O Amante - Marguerite Duras
"Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: "Eu a conheço há muito,muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos do seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado".
Penso frequentemente nessa imagem que só eu ainda vejo e sobre a qual jamais falei a alguém. Está sempre lá no mesmo silêncio, maravilhosa. É entre todas a que me faz gostar de mim, na qual me reconheço, a que me encanta."
Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa
"Ela disse que ouviu dizer de minha vida, sim. De mulheres, de famílias. Mentira. Que eu tive filhos.Mentira. Que eu tentei me matar. Mentira. Mesmo a morte eu esperava morrer com ela. Todo o tempo havia esperança, havia. Esperança. Eu tinha pressa, depois de 50 anos eu tinha pressa. Ela me mandou sentar, tomar um café. Não quis. Passou a vontade, como passageira. Esperou eu falar. Pois é. E só depois de 50 anos, 50 anos ou mais, olhando para o fundo da boca, das mãos, dos olhos dela, no mesmo portão, porta amarela, com o cheiro de jasmim, eu disse a palavra, a palavra que faltava, que sempre falta uma palavra.
Falta."
( Palavra - Marcelino Freire )
sexta-feira, 19 de agosto de 2016
Detalhes de um Por-do-sol - Wladimir Nabokov
Descendo a escada se deu conta de como estava cansado e, ao chegar à ruela, o azul vaporoso da noite de maio fez com que se sentisse tonto. Dobrando no bulevar , caminhou mais rápido. Uma praça. A estátua de pedra que representava algum herói militar. A massa sombria do parque da cidade.Os castanheiros estavam agora em flor. Então era outono. Tinha dado um longo passeio com ela na véspera do casamento. Como era bom o cheiro da terra, de umidade, quase mesmo de violetas,que se desprendia das folhas mortas espalhadas pela calçada!
Naqueles dias encantadores de tempo encoberto , o céu era de um branco-fosco e, em meio ao asfalto negro, as pequenas poças que refletiam os galhos lembravam uma fotografia mal revelada. As mansões de pedras cinzentas eram separadas pela folhagem terna e imóvel das árvores que se amareleciam ; diante da casa dos Keller , as folhas de um álamo já murcho haviam adquirido a tonalidade de uvas transparentes. Viam-se também algumas bétulas por trás das grades do portão, seus troncos agasalhados por espessas camadas de hera. Tchorb fez questão de lhe dizer que na Rússia isso não acontecia, ao que ela observou que os tons castanho-avermelhados de suas minúsculas folhas pareciam delicadas manchas de ferrugem numa toalha passada a ferro. Carvalhos e castanheiros ladeavam calçadas; os pontos em que suas cascas negras haviam apodrecido se assemelhavam a um manto de veludo verde; vez por outra uma folha se soltava e atravessava a rua voando como um pedaço de papel de embrulho. Ela tentava apanhá-las em pleno voo com uma pá de brinquedo que achara junto a um monte de tijolos rosados onde havia um conserto na rua.Mais adiante, da chaminé de um caminhão de trabalhadores subia em diagonal uma fumaça cinza-azulada que se dissolvia entre as ramagens - e um operário na sua hora de descanso, uma das mãos no quadril, ficou contemplando a jovem que, tão leve quanto uma folha morta, dançava com a pequena pá na mão erguida. Ela ria, saltitava de um lado para o outro. Tchorb, curvando um pouco os ombros, caminhava atrás dela - e lhe parecia que a própria felicidade tinha aquele cheiro, o cheiro de folhas mortas."
( trecho do belíssimo conto "O Retorno de Tchorb" )
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