sexta-feira, 16 de agosto de 2019

UMA SENSAÇÃO ESTRANHA - ORHAN PAMUK




 "Mevlut já estava em Istambul havia vinte anos. Era triste ver a velha face da cidade desaparecer diante de seus olhos, destruída por estradas novas, demolições, edifícios, cartazes, lojas, túneis e elevados, mas também era reconfortante saber que alguém ali estava trabalhando para melhorar a cidade para proveito dele, Mevlut. Ele não a via como um lugar que existisse antes da sua chegada, nem lembrava que ele fora para lá na qualidade de forasteiro. Ao contrário, gostava de imaginar Istambul em obras na época em que ele lá vivia e sonhar como no futuro ela haveria de ser mais limpa, bonita e moderna. Simpatizava com os moradores de edifícios históricos de elevadores de cinquenta anos, aquecimento central e pé-direito alto, construídos enquanto ele ainda estava na aldeia ou nem tinha nascido, e nunca se esquecia de que eles o tratavam com condescendência , mesmo que não tivessem essa intenção, o que sempre o arrepiava ante a perspectiva de cometer um novo erro. Mas ele tinha apreço por coisas antigas: descobrira ao vender boza em bairros distantes, ao entrar em cemitérios,ao observar o muro de uma mesquita coberto de musgo e a ininteligível escrita otomana num chafariz quebrado, com suas torneiras de latão há muito secas.
   Ás vezes pensava o quanto arruinava  suas costas até hoje, só para tocar a vida com a venda de arroz( que na verdade pouco lhe rendia), enquanto todos à sua volta , todos oriundos de outro lugar estavam ficando ricos, comprando propriedades , construindo a própria casa no próprio terreno, mas nesses momentos ele dizia a si mesmo que seria ingratidão de sua parte desejar mais que a felicidade que Deus já lhe concedera. E vez por outra avistava as cegonhas voando lá em cima e se dava conta de que as estações iam passando, outro inverno chegando ao fim, e ele estava envelhecendo."