sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

submissão - michael houellebecq


"O ponto de vista do budismo é que o mundo é dukkha - inadequação, sofrimento. O próprio cristianismo manifesta sérias reservas - Satanás não é qualificado como "príncipe deste mundo"? Para o islã, ao contrário, a criação divina é perfeita, é uma obra-prima completa. No fundo, o que é o Alcorão senão um imenso poema místico de louvação? De louvação ao Criador e de submissão às suas leis. Em geral não aconselho às pessoas que desejam se aproximar do islã começarem pela leitura do Alcorão, a não ser, é claro, se quiserem fazer o esforço de aprender árabe e mergulharem no texto original. Aconselho-as, em vez disso, a escutar a leitura das suratas, repeti-las, sentir sua respiração e seu alento. O islã é, afinal, a única religião que proibiu qualquer tradução no uso litúrgico; porque o Alcorão é inteiramente composto de ritmos, e rimas, de refrões, de assonâncias. Repousa nesta ideia, na ideia de base da poesia, de uma união da sonoridade com o sentido, que permite expressar o mundo."


quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

MINHA LUTA 4 - UMA TEMPORADA NO ESCURO - KARL OVE KNAUSGARD


"Não vivemos nossa vida sozinhos, mas isso não quer dizer que vejamos as pessoas com quem vivemos. Quando meu pai se mudou para o norte da Noruega e deixou de ser para mim uma presença física, com um corpo e uma voz, um temperamento e um olhar, de certo modo ele sumiu da minha vida, no sentido de que foi reduzido a uma espécie de desconforto com o qual eu por vezes me defrontava, por exemplo quando ele me ligava ou alguma coisa fazia pensar nele, uma espécie de campo em mim que podia ser ativado, e nesse campo estavam todos os sentimentos que eu tinha em relação a ele, mas não ele próprio.
 Tempos depois eu li nos cadernos de anotações dele a respeito do Natal em que ele havia ligado das Ilhas Canárias e das semanas que se seguiram.
  Nesses cadernos o meu pai aparece como ele próprio, no meio da própria vida, e talvez por isso essa leitura seja tão dolorosa para mim, porque ele não apenas é muito mais do que os sentimentos que eu tinha em relação a ele, mas infinitamente mais, uma pessoa viva e completa no meio da vida".