terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Minhas Universidades - Górki



" Qual é o papel do amor?"
Tudo o que eu lia estava saturado de ideias de cristandade, de humanismo , de clamores sobre o sofrimento em prol as pessoas - sobre isso, falavam com eloquência e fervor as melhores pessoas que eu tinha conhecido até então.
Tudo o que eu observava de forma direta não tinha quase nada a ver com o sofrimento das pessoas.A vida desenrolava-se à minha frente como uma infinita cadeia de hostilidade e de crueldade , como uma luta sórdida e incessante pela posse de ninharias. Pessoalmente, eu só precisava de livros, todo o resto não tinha sentido aos meus olhos."

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ganhando meu pão - Górki


"Eu vivia em muito boa harmonia com Páviel Odintzóv; depois, ele se tornou um bom mestre, mas não durou muito; por volta dos trinta anos, começou a beber selvagemente, depois o encontrei como vagabundo, na feira de Khítrovo em Moscou, e recentemente ouvi dizer que morreu de tifo. Dá medo lembrar quanta gente boa que eu conheci se perdeu estupidamente!
Todas as pessoas se gastam e se perdem ,é natural; mas em parte nenhuma elas se gastam com essa terrível estupidez ,e tão sem sentido, como na nossa Rússia..."


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Infância - Górki


"Antes dela chegar, era como se eu estivesse dormindo, escondido na escuridão, mas a avó apareceu, me acordou, me levou para fora e para a luz, amarrou tudo à minha volta num fio contínuo, entrelaçou tudo numa renda colorida e no mesmo instante tornou-se a amiga de toda a vida, a pessoa mais chegada ao meu coração, a pessoa que eu mais compreendia e mais amava - o seu desinteressado amor pelo mundo me enriqueceu, me impregnou de uma força resistente para uma vida difícil."


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O Torreão - Jennifer Egan


"Que tal aquele portão? Ela está apontando para fora da janela, dessa vez.
  O portão fica iluminado de noite: arame farpado enrolado no alto, a torre com um atirador de elite lá em cima. Ou que tal as portas das celas?, ela pergunta. Ou os portões dos blocos? Ou as portas dos chuveiros? Ou as portas do refeitório, ou as portas da entrada de visitas? Com que frequência os senhores encostam na maçaneta de uma porta? É o que estou perguntando.
  No instante em que vi Holly, eu logo soube que ela nunca tinha dado aula numa prisão. Não era a aparência dela - ela não é nenhuma criança e a gente logo percebe que a vida dela não foi nenhuma moleza. Mas as pessoas que dão aulas em prisões tem uma camada espessa em volta delas, que Holly não não tinha. Posso ouvir quão nervosa está, como se tivesse planejado cada palavra daquele discurso sobre portas. Mas a loucura é que ela está certa. Na última vez em que fiquei em liberdade, eu ficava  parado na frente das portas e esperava que elas se abrissem. A gente esquece como é abrir uma porta sozinho.
   Ela diz Meu trabalho é mostrar a vocês uma porta que vocês possam abrir. E bate com a mão no topo da cabeça. Uma porta que leva vocês para qualquer lugar aonde quiserem ir, diz ela. É para isso que estou aqui e, se isso não interessa a você, então por favor nos poupe, porque essa subvenção só cobre dez alunos e a gente só se encontra uma vez por semana, e eu não vou desperdiçar o tempo de todo mundo com babaquices como disputas de poder.
   Ela anda até minha mesa e olha para baixo. Olho para ela também. quero dizer: Já ouvi um bocado de discursos motivacionais vagabundos na minha vida, mas esse foi fora de série . Uma porta em nossas cabeças, ora, francamente.
   Mas enquanto ela estava falando, senti alguma coisa disparar dentro do meu peito.
   Você pode esperar lá fora, diz ela. são só dez minutos.
   Acho que vou ficar.
   Entreolhamo-nos. Muito bem, diz ela.


Então, quando Danny finalmente avistou uma luz no porão daquele castelo  e se deu conta de que era uma porta com uma luz que vinha do outro lado, quando o coração disparou no peito e ele foi até lá e empurrou a porta e ela se abriu, dando para uma escada em curva com uma luz acesa, eu sei como foi. Não porque eu seja o Danny ou ele seja eu, nenhuma merda dessas - tudo isto é só uma história que um cara me contou.Eu sei, porque depois que Holly falou da tal porta dentro da cabeça da gente , alguma coisa aconteceu comigo. A porta não era real, não havia nenhuma porta de verdade, era só linguagem figurada. Quero dizer que era só uma palavra. Um som. Porta. Mas eu a abri e saí por ela."


terça-feira, 2 de junho de 2015

O Estrangeiro - Albert Camus


"Tinha lido que na prisão se acaba perdendo a noção do tempo. Mas para mim isto não fazia muito sentido . Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser , ao mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver , sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros . E nisso perdiam o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam um sentido para mim.
  Quando, um dia, o guarda me disse que eu estava lá há cinco meses , acreditei, mas não compreendi. Para mim era sempre o mesmo dia que se desenrolava na minha cela , e era sempre a mesma tarefa , que eu perseguia sem cessar. Nesse dia , depois de o guarda ter saído, olhei-me na minha bacia de ferro. Pareceu-me que a minha imagem ficava séria , mesmo quando tentava sorrir para ela. Agitei-a diante de mim. Sorri e ela conservou o mesmo ar severo e triste . O dia acabava e era a hora de que não quero falar , a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão num cortejo de silêncio. Aproximei-me da janela e, á última luz, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria , e que há de espantoso nisso, se nesse instante eu também estava sério! Mas ao mesmo tempo e pela primeira vez nos últimos meses ouvi distintamente o som da minha voz. Reconhecia-a como a que ressoava há longos dias nos meus ouvidos e compreendi que durante este tempo falara sozinho. Lembrei-me, então, do que dizia a enfermeira no enterro de mamãe. Não, não havia saída , e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões."

domingo, 31 de maio de 2015

Catarina, A Grande - Robert K. Massie


" Em 1765, Catarina teve para Diderot um gesto grandioso , que se tornou o assunto das conversas na Europa. Diderot e sua esposa tiveram três filhos , e todos morreram . Então, aos 43 anos , madame Diderot teve uma filha , Marie Angélique. Diderot idolatrava essa menina , dava grande valor ao tempo que passava com ela, e sabia que ele deveria lhe fornecer um dote. Mas não tinha dinheiro , pois tudo estava indo para a Encyclopedia . Decidiu, então, vender seu único bem de valor: sua biblioteca. Catarina ouviu falar da decisão por um amigo de Diderot , o embaixador da Rússia na França e Holanda , príncipe Dmitry Golitsyn . Diderot pedia 15 mil libras pelos livros. Catarina ofereceu 16 mil libras , mas com uma condição : os livros permaneceriam na posse de Diderot enquanto ele vivesse . "Seria cruel separar um intelectual de seus livros", ela explicou .
Assim , Diderot se tornou , sem que ele e seus livros nunca tivessem saído de Paris , bibliotecário de Catarina. Pela prestação desse serviço, ela lhe pagava um salário de  mil libras por ano. No ano seguinte , quando o salário foi esquecido e não pago, Catarina, constrangida, enviou a Diderot 50 mil libras - como pagamento adiantado dos próximos anos, ela disse.
A compra da biblioteca de Diderot pela imperatriz inflamou a imaginação da Europa literária. Diderot pasmo, escreveu à benfeitora : "Grande princesa, prosto-me a seus pés . Estendo-lhe meus braços , e lhe falaria , mas minha alma desfalece , minha mente se turva. Oh, Catarina , creia que seu reinado não é mais poderoso em São Petersburgo que em Paris". Voltaire acompanhou: "Diderot ,
D´Alembert e eu somos três que lhe ergueríamos altares. Quem iria suspeitar , há cinquenta anos , que um dia os citas ( russos ) premiariam tão nobremente em Paris a virtude , a ciência e a filosofia , tratadas tão vergonhosamente entre nós". E Grimm: "Trinta anos de trabalho não trouxeram a Diderot a menor recompensa . Agradou à imperatriz da Rússia pagar o débito da França". A resposta de Catarina foi: "Nunca pensei que comprar a biblioteca de Diderot me valesse tantos cumprimentos".
Sem dúvida, havia um propósito maior por trás da generosidade . Se assim foi, o presente atingiu o objetivo, pois os europeus passaram a entender que havia outras coisas no Leste além de neves e lobos. Diderot se atirou à tarefa de recrutar talentos na arte e na arquitetura para Catarina . Sua casa se tornou uma agência de empregos para ela. Escritores , artistas , cientistas , arquitetos , engenheiros, todos acorriam a solicitar nomeações para São Petersburgo."


sábado, 24 de janeiro de 2015

Nicolau e Alexandra - O Relato Clássico da Queda da Dinastia Romanov - Robert K. Massie


" As cartas da imperatriz para o czar nunca foram dirigidas a outros olhos que não os dele. Ao todo, foram encontradas 630 cartas numa mala de couro preto em Ekaterinburg após sua morte. Destas, 230 foram escritas no período desde seu primeiro encontro até estourar a guerra , em 1914. As outras 400 foram escritas durante os anos de guerra, 1914 - 1916. Foram escritas sem a mínima ideia de que alguém mais fosse lê-las, e muito menos que um dia viriam a ser publicadas como documentos históricos fundamentais para explicar eventos, personalidades e decisões às vésperas da Revolução Russa. Hoje, elas oferecem isso e até mais: uma janela íntima para uma alma , o retrato único de uma mulher que nenhum de seus contemporâneos na Rússia jamais poderia ver.
Alexandra escrevia profusamente . Ela podia começar de manhã cedo, acrescentar parágrafos durante o dia, continuar com páginas e páginas tarde da noite e talvez até mais no dia seguinte. numa letra grande, redonda, ela escrevia ao czar em inglês , no mesmo telegráfico que usava com seus amigos: uma prosa ofegante, com ortografia irregular , muitas abreviações , frequentes omissões de palavras que pareciam óbvias e pontuação com muitos pontos e travessões. Tanto a extensão quanto o estilo de suas cartas são infelizes.
 Com muitas omissões e saltos, ela dá a impressão de superficialidade em temas que na verdade a preocupavam muito. Da mesma forma, o intenso fervor de outras passagens é forte evidência das grandes paixões de que Alexandra era capaz, mas não prova suficiente de que a imperatriz- como alguns a acusaram - era louca. A própria extensão das cartas tornava difícil sua interpretação para historiadores e biógrafos. Ler todas é tarefa árdua e impossível citar mais do que uma minúscula fração delas. Contudo, e de forma extraordinária nesse caso, os excertos podem ser enganadores. Um pensamento cuja germinação se estende por sentenças - talvez parágrafos - surge inopinadamente com força total numa frase dura e condenatória. Essas frases, pinçadas da massa de verbosidade, fazem uma mulher loquaz parecer inequivocamente histérica.
 Um aspecto notável dessas cartas era o frescor do amor de Alexandra. Após duas décadas de casamento, ela ainda escrevia como uma garotinha. A imperatriz, tão tímida e até fria ao expressar emoções em público, soltava nas cartas toda sua paixão amorosa. Por baixo da reservada superfície vitoriana, ela revelava os sentimentos floridos, extravagantes dos poetas da época.
 Geralmente, as cartas chegavam com lírios ou violetas imprensados entre as páginas e começavam com "Bom-dia, meu querido...Meu amado...Meu doce tesouro...Meu anjo muito amado." Terminavam com "Durma bem meu tesouro...Anseio por tê-lo em meus braços e repousar a cabeça no seu ombro...Anseio por seus beijos, seus braços , que o tímido Childy ( Nicolau ) me dá
(somente) no escuro e esposinha vive por eles."
(...)
Embora sua linguagem tivesse o ardor transbordante do amor da juventude, Alexandra não se iludia com a passagem do tempo: "32 anos atrás , meu coração de menina se atirou a você em profundo amor...Sei que não devia dizer isso, e para uma madura mulher casada pode parecer ridículo, mas não consigo evitar. Com os anos, o amor aumenta e o tempo sem a sua  doce presença é duro de aguentar. Oh, que nossos filhos tenham a mesma bênção em suas vidas de casados."

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Raul Taburin - Sempé


" Numa noite em que dava uma garibada num descarrilhador, Figure chegou, depois de dois meses de ausência. Eles ficaram um momento em silêncio.
E, logo que o fotógrafo abriu a boca, Taburin o interrompeu de supetão:
"Sou eu quem falo agora! É preciso que você saiba: eu nunca soube...nunca...eu deveria ter dito...é um segredo...entende?...sou incapaz de..."
De repente, ele se sentiu de bom humor, com vontade de rir. E ria:
"Não sei andar ...é mesmo engraçado! eu não sei andar de..." E ele ria cada vez mais, e Figure também ria, porque começava a entender."

O céu Não sabe Dançar sozinho - Ondjaki


"sua,noite.entre os teus dedos o meu corpo existe para celebrar o amor. empurro a palavra madrugada e é doce essa tarefa. pronuncio palavras ao teu ouvido. palavras que o esquecimento acolhe no seu regaço, palavras para reprogramar o teu sentir . que a travessia aconteça . que os camelos paralelos a nós possam transportar água suficiente e o sol nos seja brando . que o vento não anule as peugadas das rãs.
de tempos a tempos necessitarei desse mapa."