sexta-feira, 19 de junho de 2009

Ana Karênina


"Ana respirou outra vez a plenos pulmões o ar frio,e,já com a mão na portinhola do compartimento ,de novo se preparava para embarcar quando um homem de capote militar se aproximou,ocultando a luz do farol.Ana observou-o e reconheceu Vronski.Este levou a mão ao barrete,inclinou-se e perguntou-lhe se lhe podia ser útil em alguma coisa.Ana olhou-o um momento sem responder.Embora ele estivesse de costas para a luz,julgou ver-lhe nos olhos e na fisionomia a expressão de respeitoso entusiasmo que tanto a impressionara na véspera.Acabava de dizer para si mesma,depois de o repetir tantas e tantas vezes naqueles últimos dias,que Vronski,para ela,era um rapaz como outro qualquer que encontrava por todos os lados na sociedade,e em quem nunca permitiria pensar,e eis que, de repente,ao vê-lo,apoderavam-se dela a alegria e o orgulho.
Não precisava de lhe perguntar por que estava ali.Estava ali,sabia-o com toda a certeza,como se lho tivesse dito,evidentemente para se encontrar com ela.
_Não sabia que tinha de ir a São Petersburgo! Que vai fazer lá? - perguntou Ana, deixando descair a mão, que se firmara já no varão da portinhola.
A animação e a alegria,uma animação e uma alegria indizíveis,resplandeciam-lhe no rosto.
_Que vou fazer lá? - repetiu Vronski, fitando-a nos olhos.-Bem sabe que vou para estar junto da senhora.Não posso fazer outra coisa."

(diálogo entre Ana Karênina e Vronski -do romance Ana Karênina(1873/77 )-Leon Tolstoi)

terça-feira, 16 de junho de 2009

O Espelho


"Ao chegar em casa, diz-lhe a mulher:
-Bom dia, meu marido.Trouxe-me o que lhe pedi?
-Naturalmente.Aqui está.
E o chinês dá o pacote á mulher, que apressadamente o abre.Essa mulher nunca tinha visto um espelho.E vendo nele um vulto de mulher,fica indignada:
-Meu marido, comprou outra mulher!
E Mel de Crisântemo chorou todas as lágrimas de seu pequenino coração.Os soluços chamam a atenção de sua mãe.
-Ah! mamãe,mamãe- grita ela. -
Venha ver.Meu marido trouxe para casa outra mulher.
A mãe toma o espelho, olha-o e diz á filha:
-Fica sossegada: é tão velha e tão feia!"

( trecho co conto O Espelho - Sacha Guiltry - Maravilhas do Conto Russo )

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Uma Brincadeira


"Certa vez, ao anoitecer - faltavam uns dois dias para a minha viagem - estava eu sentado no jardim, que um alto tapume com pregos separa do pátio da casa de Nadia...Ainda está bastante frio, há restos de neve no solo, as árvores continuam adormecidas, mas já cheira a Primavera e os corvos, preparando-se para a noite, armam uma grande algazarra.Aproximo-me do muro e, durante muito tempo, espreito por uma fenda.Vejo Nadia sair para o terraço e dirigir ao céu um olhar
aflito,plangente...O vento primaveril sopra-lhe na cara pálida e triste.Ele traz-lhe a recordação daquele outro vento que nos silvara nos ouvidos no escorregadouro, onde ouvira aquelas palavras de amor; o rosto de Nadia torna-se melancólico, e uma lágrima corre-lhe pela face...A pobre moça estende ambos os braços, como que rogando ao vento que lhe traga outra vez aquelas palavras.E, logo que o vento sopra na direção dela, digo:
_Amo-a,Nadia!
Meu Deus, que reação aquilo provocou nela!Solta um grito, abre-se num largo sorriso e estende os braços ao encontro do vento, alegre,feliz,tão linda...
Eu volto para dentro, para fazer as malas...
Isto passou-se há muito tempo.Nadia já está casada; casaram-na ou casou-se - vem dar ao mesmo - com um funcionário qualquer e tem três filhos.
Não esqueceu como outrora escorregamos nem as palavras que o vento lhe levava:
"Amo-a,Nadia". Para ela, essa é a mais feliz, a mais comovedora e bela recordação da vida...
E eu, agora mais velho, já não sei para que dizia aquelas palavras, para que brincava..."

( trecho do conto "Uma Brincadeira" de 1886 de Anton P. Tchekhov - Contos e Novelas)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O Arco


"O velho quebrou um ramo seco e colocou-o no arco.
Um gramado brilhante,sereno,estendia-se na sua frente e nas folhas recentemente cortadas brilhavam as gotas de orvalho, incontáveis e variegadas.
De repente, o velho bateu com o pedaço de pau no arco e começou a correr.Ria de alegria, correndo atrás do arco como o menino. Sacudia as pernas, alcançava o arco com o pedaço de pau, levantando-o acima da cabeça, como a criança havia feito.
Parecia-lhe que mais uma vez ele próprio era uma criancinha delicada e feliz. Sua mãe ia seguindo-o, olhando-o com um terno sorriso. A princípio sentiu, como uma criança, um ligeiro arrepio na floresta escura, no gramado alegre e na relva macia.
A barba cinzenta, como a de um bode, balançou-se no rosto estragado, e a um tempo o riso e a tosse espoucaram da boca desdentada.
Pela manhã o velho gostava de ir á floresta para brincar com o arco no gramado. Ás vezes temia que o pudessem ver, que rissem, e com essa ideia se apoderava dele um invencível sentimento de vergonha. E a vergonha estava próxima do medo e as suas pernas tornavam-se fracas, e sob ele se vergavam. Então olhava em redor cautelosamente, com a cara envergonhada.
Mas nada - ninguém o vira, ninguém o escutava...E, já tendo brincado, até o coração encher-se de alegria, voltou tranquilamente para a cidade, com um claro e feliz sorriso nos lábios.
E assim ninguém o viu; e nada mais aconteceu. Durante vários dias brincou pacificamente. Depois numa manhã orvalhada, apanhou um resfriado, foi para a cama e morreu. Quando morria, no hospital da fábrica, entre pessoas estranhas e indiferentes, sorriu serenamente.
Estava confortado com a ideia de que ele também havia sido criança, tinha pulado na grama fresca sob as árvores sombrias enquanto a mãe querida o contemplava"

( trecho do conto "O Arco" - do escritor russo Fedor Sologub - Maravilhas do Conto Russo )

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A conversão do diabo


"O sacerdote moribundo olhava cheio de alegria a seu redor, e se entregava a suas recordações. O sol desaparecia pouco a pouco.
_ Amo também Florença, esta formosa cidade em que vivi tanto tempo - continuou o sacerdote.- Agradava-me sentir sob meus pés as pedras tépidas de suas calçadas. Ah! meu amigo, quando se anda pela terra setenta anos, esta se torna em alguma coisa assim como nossa mãe, e até suas pedras perdem a dureza...E isto que estou dizendo será ainda mais certo ali, onde vou agora...
O diabo soltou um suspiro, o sacerdote, que continuava em seus braços, sentiu-o; compreendeu a dor do diabo e lhe disse com morimbunda entonação:
_ Não suspires...Não se desesperes...É muito possível, meu amigo, que também vás ao Paraíso...porque és...um diabo...muito bom...
O sol verteu manchas sangrentas pelo céu, empurrando o horizonte e extinguido-se. O velho sacerdote extinguiu-se com o sol. Morreu, abandonando sua querida Florença e todas aquelas terras, que tanto amava.
Desesperado o diabo esforçava-se por despertá-lo, falando-lhe com voz rude e áspera:
_ E as estrelas, meu padre? O senhor não viu ainda a lua, que está quase a surgir no horizonte, e vai projetar, neste instante,sua pálida luz sobre as lajes da sua amada Florença. Abra os olhos, meu padre! Suplico-lhe...
Quando compreendeu que tudo estava findo, e que o amigo e protetor estava bem morto, transportou-o para baixo, para sua alcova. E enquanto o levava , em seus braços, pensava: "Subi com ele vivo ao campanário, e o desço morto!"
Uma dor profunda apoderou-se da alma do diabo. Agitava-se, chorava, gemia, uivava como um animal feroz, arrepelando os cabelos: não estava acostumado à dor humana, e manifestava-o de forma ridícula. Tão grande era o seu desespero que, apanhando seu único tesouro - o manuscrito despedaçado - o atirou a um canto. No entanto, ao fazer isso, não compreendeu que, precisamente naquele instante, se realizava o bem, esse bem intangível, que ele procurava com tanto afã e á custa de tantos e tão grandes sofrimentos. E não compreendeu em toda a sua vida".

( trecho do lindo conto "A conversão do diabo" do escritor russo Leônidas Andreiev - Maravilhas do Conto Russo )