domingo, 15 de abril de 2012

Desbiografias - Manoel de Barros

Desbiografias

Bernardo morava de luxúria com a lesma.
Não era fácil ficar a seu lado sem receber algum contexto de lesma.
Nossa linguagem não tinha função explicativa - mas só brincativa.
Tipo assim: Eu vi uma pedra emocianada de borboletas.
Ou tipo assim: A gente viu a tarde pousada na beira do rio com as suas rosadas pernas.
Era um gosto maior para nós apreciar as pernas rosadas da tarde !
A gente queria com as nossas visões afastar do bom senso o que fosse racional.
E cair no absurdo que faz a beleza da poesia : Tipo assim : Nós vimos um sapo ajoelhado /
      no próprio abandono - Isso dava melhor expressão ao abandono.
E ao sapo.
Porque a gente achava que no abandono a palavra faz fruto.
De noite o deserto era um lugar em nós.

Resumo - Mario Benedetti

Resumo

Resumindo
digamos que oscilamos
entre alegria e tristeza
quase como dizer
entre o céu e a terra
ainda que o céu de agora e o de sempre
se ausente sem aviso

as ideias vão se tornando sólidas
sensações primárias
palavras ainda em rascunho
corações que batem como máquinas
serão nossos ou de outros?
este choro de inverno não é igual
ao suor do verão

a dor é um preço / não sabemos
o custo inalcançável da sabedoria

pensamos e pensamos duramente
e uma paixão estranha nos invade
cada vez mais tenaz
mas mais triste

resumindo
não somos o que fomos
nem menos do que fomos
temos uma desordem na alma
mas vale a pena sustentá-la
com as mãos / os olhos / a memória

tentemos pelo menos nos enganar
como se o bom amor
fosse a vida


( Resumo - Mario Benedetti )

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Livro - Um Encontro - Lygia Bojunga




" Eu gostava muitíssimo de cada leitura que eu fazia dos Irmãos Karamazov , das Recordações da Casa dos Mortos , dos Humilhados e Ofendidos e de outros livros de Dostoievski . Mas eu me lembro que eu andava por aquelas páginas sempre olhando daqui,dali , meio que procurando uma casa, uma rua , um casaco, um machado , enfim : um parentesco , um eco do  Raskolnikov , que era o personagem central do livro do Dostoievski que eu mais amava: Crime e Castigo. Esse livro foi para mim o exemplo perfeito do quanto nós , leitores , podemos nos envolver emocionalmente com um personagem literário.
Eu achava o Crime e Castigo superbem escrito ; os personagens tão variados ! Mas, para ser franca , o meu grande envolvimento com esse livro foi porque eu me apaixonei pelo Raskolnikov , pelo desequilíbrio dele , pelo desespero dele , pela necessidade que ele tinha... eu digo que ele tinha porque eu voltava sempre ao livro , e então a necessidade ia se repetindo ... pela necessidade que ele tinha de baixar o machado no crânio daquela velha , que horror , e ir se entregando , devagarinho , pro castigo.
Assim, toda apaixonada , eu não queria largar o Raskolnikov : de dia, de noite, em casa, na escola , no ônibus , eu tinha sempre que estar abrindo o Crime e Castigo pra me encontrar com ele .
E pela primeira vez , em dez anos de leitora , eu tive a noção ( ainda meio vaga ) da inquietação que pega a gente quando se está assim em estado de amor por um livro : aquela coisa aflita de estar sempre procurando um jeito de ficar sozinha com ele; só a gente e o livro.
É : o Raskolnikov era mesmo uma paixão.

( ai que delícia ler essa declaração ! também eu sofri essa paixão por Raskolnikov! me apaixonei pela sua fraqueza, pelos seus defeitos, por ele. E pelo jeito não fui a única !).